quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Avessos



Nasceu em família muito louca. Seus pais hippies viviam fazendo jus às filosofias transcendentais que ouviram a juventude inteira.  Ouviam de Deep Purple à Tropicália. Usavam cores diversas, cabelos compridos. Cultuavam a mãe terra e outras coisas ‘naturalistas’, se é que você me entende.

Ele parecia que fora lançado ali por ironia do destino. Usava roupas recatadas, cabelo curto e adorava televisão. Por conta da loucura dos pais às vezes ficava mais com seus avós. Quem sabe por conta disso seus gestos eram considerados retrógados, quadrados na ótica de seus pais, e também da galera da sua idade. Se ele não tivesse nascido em casa, pelas mãos de uma parteira (coisa da onda, mora?), jurariam que teria sido trocado na maternidade.

De propósito ou não passou a fazer tudo aquilo que seus pais bichos-grilos faziam, arrumou até uma religião convencional. Passou junto com vovô e vovó a participar das missas da paróquia do bairro. Os pais não estranharam tanto, afinal de tão diferente o moleque só poderia mesmo lhes fazer o caminho inverso.
Fez primeira comunhão, deu uma força uma época como coroinha e tempos depois, um pouco mais crescido, participava dos eventos realizados pela juventude. Tudo dentro dos conformes e preceitos da santa fé.

Foi mais ou menos nessa época que seus pais foram morar próximos a uma reserva indígena, bem longe da cidade, numa comunidade chamada Luz da Manhã, formada exclusivamente por gente ligada às filosofias orientais.
Ele ficou um pouco triste, nunca ficara tão longe de seus pais (mesmo que sempre houvesse um abismo entre eles), agora ele começou a sentir algo que nunca nutrira por eles: saudades profundas.

Sabe Deus se foi aí, ou por conta doutra coisa, resolveu se ligar ainda mais à fé. Entrou para o seminário e anos depois sagrou-se sacerdote. Depois do tempo de adaptação de costume, bateu no coração idéia, agora mais madura, de levar o amor e a fé na prática aos povos do interior.

Muitos juraram que não havia coincidência alguma quando o jovem padre fora parar justamente numa certa reserva indígena onde pelas redondezas ficava comunidade de filosofia transcendental.
Meses depois, com a coragem necessária e a saudade lhe apertando o peito, fora com coração de bandeirante, procurar seus pais por lá.

O que será aquela visão entrando pela cerca da Comunidade? Parece um padre... Será que resolveram lhes catequizar? O riso foi natural, mas certo casal emudeceu na hora ao notar a proximidade do padreco. Parecia-se demais com certo jovem que deixaram anos atrás na cidade grande.

Uns instantes se passaram até ficarem frente a frente. Os que estavam no entorno, perceberam a dramaticidade da cena.
Quase que no mesmo momento os três foram ao encontro mútuo num abraço completamente familiar.
Depois do susto habitual e da saudade morta naquele instante, se entreolharam com entendimento. Cada um entendeu que na vida decide-se o caminho a seguir e entender isso na trajetória de quem amamos faz toda a diferença.

Nunca falaram sobre ‘certo’ e ‘errado’, apenas se curtiram, se amaram e em benefício dos que lhe cercam até trabalharam juntos vez ou outra.
Utopia? Não, necessidade!

Wendel Bernardes.




domingo, 23 de dezembro de 2012

Desejos...



Aos que se iluminam nas festas,
Aos que delas se escondem por muitos motivos.

Aos que acreditam na magia,
Aos que insistem em negá-la.

Aos que gastam aos tubos,
Aos que usam o que têm.

Aos que aguardam pelos presentes,
Aos que precisam apenas de uma presença...

Aos que aguardam ansiosamente pelas badaladas dos sinos,
Aos que dormem profundamente ignorando os sons...

Desejo uma noite de Paz,
de Alegria, de encontro com quem se ama e muita,
muita Completitude!



quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Os Estranhos Opostos.





Eram completamente o oposto um do outro.
Ele vindo do subúrbio. Adorava futebol, pastel com caldo de cana, petisco no bar com a rapaziada, samba de roda e boemia.

Ela da Zona Sul, nível superior, Chico Buarque no player, voleibol na adolescência, chá com as amigas do novo curso de gastronomia que inventara. Recatada, fina, altiva, uma socialite.

Ele simples, quase rude. Fora mecânico, mas agora trabalha numa autopeças que com sacrifício abrira em seu bairro de origem. Melhorou um pouco de vida, porém a forma quase bárbara de atender aos seus clientes com a voz a plenos pulmões ainda o persegue. Quase um ogro.

Ela de voz mansa e suave, apenas elevou o tom de voz duas vezes em toda a sua vida. Quando por conta do parto natural de seus dois filhos pediu imperativamente que tudo terminasse logo. Sentir dor jamais! Mas o presente compensou; teve dois filhos lindos como ela mesma sempre diz.

Ele não levava desafio pra casa.
Xingava, gesticulava, perdia o amigo, mas nunca perdera uma boa briga. Parece que saía de casa armado até os dentes. Poderia surgir o Armageddon que estaria preparado. Bastava alguém lhe pisar o calo pra nova guerra mundial se estabelecer, e isso em qualquer lugar, porque macho que é macho mesmo defende sua moral não importa onde!

Ela era consciente de seus deveres e direitos, mas procura sempre resolver a tudo na diplomacia. Em alguns momentos até faz vista grossa pra coisa ou outra simplesmente pra não dar chance pra más conversações ou aborrecimentos desnecessários.

Ele sol, ela lua. Ele negro, ela branquinha. Ele azedo, ela uma doçura.
Eram completamente diferentes, estranhos um ao outro, opostos!
Eram opostos complementares....
Um casal...

Wendel Bernardes.


sábado, 1 de dezembro de 2012

Mentiras Sinceras...

Era um jovem um tanto tímido na presença da família, mas com as pessoas certas ele ficava mais a vontade. Ria, brincava, até vez ou outra, conseguia ser o centro das atenções. Algumas vezes recatado, outras vezes afogueado. Bom, isso é completamente normal em todos nós, não? Existem momentos em que somos assim, noutros somos assado. Porém no caso dele tudo era mais complexo. Não conseguia dizer sim, mal poderia dizer não!


É que ao longo do tempo foi conhecendo pessoas ótimas, mas com personalidades muito distintas e as queria inteiras em sua vida. Bem... Muito embora soubesse que algumas pessoas não poderiam ‘conviver com outras’. Iguais a alguns pensamentos, algumas posturas, ainda assim agregava-as como colecionista. Como num erro patológico!

Certa vez ouviu não sabe bem onde que se “dependesse dele, deveria manter a paz com todos”. Mas creio que ele não entendera muito bem a essência do que essa frase quisera dizer. Por conta disso assumiu uma postura muito impessoal, porém fez dela sua bandeira, e inacreditavelmente conseguiu sintetizar isso em si mesmo. Acendia uma vela pra Deus, outra pro demônio!

Evitava assuntos polêmicos, sorria sempre pra todos, com uns era quase um palhaço, mas com outros passava a imagem de responsável, maduro, centrado, focado... Contradição ambulante.

Mas quem o conhecia de verdade sabia de suas fachadas, de seus medos, de seus demônios interiores e quais sorrisos eram verdadeiros e quais sorrisos eram maquiagem. Era um grupo seleto, talvez duas, três pessoas. E mesmo dentro delas talvez apenas um o conhecia melhor. Claro que dele não escondia nada, nem se quisesse, mas era como que algo a consenso, pois todos somos produtos do meio onde vivemos e eles entendiam bem o que isso significava.

Passou a ser muito difícil de sobreviver, a vida passou a ser uma mentira. Pelo menos uma mentira na maior parte do tempo. Em alguns momentos poderia ser ele mesmo, mesmo que isso durasse apenas uma meia hora por dia, às vezes durava um pouco mais, mas lhe bastava. Era a cura da utopia.

Até o dia em que algo lhe venceu. Desistiu de viver sua vida em gotas e decidiu mergulhar no oceano que era sua atuação. Não mais gotas dele mesmo, mas agora um mar de sorrisos constantes. Permitiu-se apenas agora se analisar quando as luzes se apagam e quando põe a cabeça no travesseiro. Já não sabia mais se a mentira era a verdade, ou se a verdade sempre fora uma utopia. Atuara tanto, que o papel da sua vida lhe cobrara os prêmios que sua atuação lhe trouxe.

Mudou, mas não sabe bem de nada ainda.
Não sabe o que essas decisões lhe trarão.
Não sabe se será feliz sendo quem os outros querem que ele seja (e que ele acredita ser), ou se poderá conviver com um buraco em seu peito, com a morte de alguém que se foi...
Quem se foi?
Ele mesmo!

Wendel Bernardes.


sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Não falta mais nada...





Nasceram quase no mesmo dia, separados na verdade por algumas horas. Cresceram juntos, pois eram vizinhos. Brincaram de pique-tá, de tóquinho, esconde-esconde, pique bandeira e polícia e ladrão.
Estudaram juntos numa mesma escola durante o ensino fundamental, quase sempre numa mesma turma. Claro que andavam muito juntos, colados mesmo! Eram como irmãos.

Tinham uma ligação como poucos. Sem falar muito às vezes só de olhar, um já sabia o que o outro queria. Essa integração veio com o tempo e também porque foram tornando-se um pro outro verdadeiro elo pra vida.

Paulo era magro, esguio, cabelos ruivos e crespos. Tinha sardas e por isso foi apelidado de Canela. Marcos era forte, baixinho, negro com cabelos raspados e por conta de sua tara por futebol era chamado de Fominha.

Nem me pergunte quantas piadinhas ouviram ao longo da vida. Trocadilhos por conta de seus apelidos. “Fominha de Canela” era o principal. Pedro ficava irado, mas Marcos dava risadas a todo volume.
Tinham boa vida de moleques.

Cresceram um pouco mais e essa dupla precisou pensar no futuro. Canela queria fazer curso profissionalizante e passou pra uma famosa escola técnica pública do Rio. Já Fominha focou tudo nos estudos regulares e por fora fazia cursinho pré-vestibular. Mas mesmo com a agenda agora diferente ainda se viam sempre, afinal eram vizinhos porta a porta e costumavam fazer barulho na parede pra saber quando chegavam. Aí era fogo, iam pro muro e botavam os assuntos em dia até as tantas.
Tudo bem nessa amizade gerada na cumplicidade e franqueza. No ‘coleguismo’ como seus pais diziam...

Certo dia no ponto de ônibus, Canela do nada sofreu um desmaio. Não por acaso foi socorrido pelo melhor amigo que também estava no ponto pra escola. Exames daqui, transferências de lá e o papo tranquilo dos amigos de infância ficou um pouco menos alegre. Canela estava seriamente doente.
Quase desistiu de tudo quando soube que a vida seria uma barra, isso se conseguisse superar alguns obstáculos. Parece que vira seus sonhos saírem voando pela janela. Como bom amigo, Fominha vestiu a camisa e deu ao ‘quase irmão’ a força que precisava. Aliás, essa história era uma brincadeira frequente entre os dois. Diziam sempre que eram quase irmãos e separados apenas por um muro!

Então Fominha não poderia fazer nada menos que juntar a galera da rua, ir até a escola técnica e agregar a turma de lá. Nessa cruzada contra o tempo chegou até a ir a alguns programas de rádio locais pra somar força à luta. As redes sociais bombaram de correntes positivas! “Força, Canela” era o lema da corrente do bem.

Ele mesmo se encarregava de gravar vários vídeos diários e mostrar as mensagens positivas no quarto de hospital pro Canela. Era a melhor hora do dia... na verdade, a única que prestava no momento.

O elo entre os meninos só aumentou, mas as coisas estavam mesmo piorando pro Pedro. Só poderia sair dessa com transplante de medula óssea, e como isso é demorado e complicado mesmo hoje em dia, tudo se tornava verdadeira tortura pro Canela.
A família fez os exames e nada... então, iriam aguardar pelo cadastro nacional de doadores. A maior dificuldade ainda estaria por vir.
Verdade... dureza pura.

Se o destino não corroborasse com um milagre que sempre se precisa, tudo poderia estar no fim. E os milagres chegam no tempo certo. Inacreditavelmente Marcos era o doador compatível. Como pode? Bem ali do lado, durante a vida toda estava a salvação de Pedro, num salto de um muro!

Todos os procedimentos foram feitos e, graças a Deus a cirurgia foi um sucesso! Canela passa bem e esta a cada dia se recuperando mais, porém agora vai ser obrigado a ouvir outra piadinha dessa vez de seu grande amigo.
“Cara... você só se salvou porque agora tem um pouco do meu sangue aí contigo...!”
Riram litros dessa afirmação, mas uma coisa Pedro fez questão de frisar:
“Mano, se faltava alguma coisa pra sermos irmãos de verdade,
agora não falta mais nada... tem um pouco de você aqui comigo, né?”
Era verdade, não faltava mais nada.

Wendel Bernardes.

terça-feira, 20 de novembro de 2012

Milagres Diários.



Passou o final de semana inteiro enfornada no quarto. Ouviu toda a coleção de discos de Rock de seu irmão e ainda tomou escondida uma garrafa (inteira) dum Don Perignon que seu pai trouxera de sua última viagem a França, pouco antes de quebrar com a empresa de advocacia que estava há três gerações na família. Quando ele descobrir que a garrafa da ‘ocasião especial’ se fora.... hummmmm!

Estava assim ‘meio que na fossa’ por conta da sua vida. Tudo estava tristemente condenado em sua adolescência. Fotos suas em situações constrangedoras foram divulgadas na web por uma ‘bad girl’ da escola, brigara com sua melhor amiga e se tudo já não fosse o suficiente ainda foi vítima da pior coisa que uma garota poderia conceber: uma espinha terrível bem na ponta do nariz...
- Cara, tô a cara da rena do nariz vermelho... Se fosse natal papai Noel ia me amarrar num trenó!!!

E como nada vem sozinho o carinha mais show de bola da escola inteira nem dá ideia pra ela. E fica pensando: Imagina se ele viu as fotos!! Morte social na certa!!

Mas a segunda feira estava por chegar e mesmo com a dor de cabeça causada por um bom vinho tomado de goladas (que pecado) ia ter que subir num salto e provar que era digna da reputação que criara durante esses anos todos! Pense se iria dar mole? Jamais!

Assim que levantou notou que o tempo abriu. O final de semana que fora chuvoso, maior pinta de cidade européia, sumiu como que por encanto, e o sol brilhava lindo, com apenas poucas e espaçadas nuvens no céu. Alias lindas nuvens por sinal. Abriu como uma verdadeira moldura abençoando começo tão belo dum dia que seria uma joça!

Desceu imaginando que a bronca por causa do Perignon seria ‘sinistra’, mas notou que mamãe estava especialmente carinhosa hoje. Era alguma coisa sobre uma tia doente que saíra do coma, sei lá... Coisa assim. Bom, valeu assim mesmo, né? Não sabia ao certo o que seu pai diria por conta do vinho, mas aí já é outra história.


Olhou pro relógio e descobriu-se atrasada... (que novidade!) agora só a amiga poderia lhe salvar passando aqui pra uma carona. Olhou pro celular e imediatamente lembrou-se da briga entre as duas. Quando imaginou que tudo poderia ser pior, notou alguns torpedos e dentre eles um da amiga dizendo: Olha, foi mal por tudo na sexta... Vamos deixar tudo pra lá... Te pego segunda cedinho, viu? Bjus!
Cara, como assim? Como pode tudo estar se ajeitando mesmo sem esforços hercúleos? (e que parada de ‘hercúleos’ é essa que nem sei o que significa?).

Confabularam pra caramba no carro até a escola sobre o final de semana das duas (uma sem a outra, coisa rara!), mas do que mais falaram foi das coisas da semana anterior e em como deveriam se vingar da tal bad girl da escola. Uh, que garota invejosa, cara!

Outra coisa que a estava preocupando era imaginar seus grupinhos e ela estava envergonhada demais pra sequer dar bom dia a alguém. Já imaginava os sorrisinhos falsos, as repercussões das fotos... Mas chegou e já tinha gente na porta pra ‘guiá-las’ até a sala... Parece que aquele final de semana fora muito sem graça pra todos, queriam amigos pra curar o marasmo! Ninguém disse nada, nem um risinho, nem olhar atravessado... Nada!

Algumas aulas de filosofia chatas depois e esbarrou como que do nada com o tal carinha. Meu Deus, como estou...? Só aí se lembrara da tal espinha sinistra que a deixara qual a rena de Noel... peraí... que espinha? Claro que se olhou no espelho milhares de vezes hoje. Como não notaria uma espinha sequer? Inda mais aquela monstruosidade!

- Oi.. Ele disse, como você está? Emendou.
- Eu, eu, eu...
- bom cê tá legal, né? Tô vendo!
- Ah sim, agora tô mesmo!
- Ei, sabia que vai rolar um grupo de estudos em geografia? Bom, eu vou, pois tô de recuperação esse bimestre, tu vem?
Ela era fera em geografia, mas num iria perder essa oportunidade por nada nessa vida.
- Claro, depois me passa as datas e os horários e estarei lá, com certeza! Sorriu enquanto segurava forte seus livros contra o peito.

Não podia acreditar... Ele quebrou o gelo, ele falou com ela! Impossível!
Doida pra contar a amiga até caçou o celular no bolso, foi então que percebeu que o perdera. Pronto, era o que faltava pra estragar o dia, celular caro, verdadeiro computador de mão. Se perder, papai me mata na certa, pensou!

Foi à sala de aula, perguntou pra galera, e nada! Pronto... ‘deu ruim’! Foi quando um senhorzinho da faxina disse:
- Procurando algo?
- Perdi meu celular, o senhor viu tio?
- Já procurou na sala de achados e perdidos?
Ela achava que ir a sala de achados e perdidos era pura perda de tempo com o perdão do trocadilho (e trocadilho ruim, claro), mas era só o que poderia fazer, então foi.

Chegando lá a coordenadora agiu com certa simpatia, coisa pouco peculiar, né?
- Dona, perdi meu celular... tá aqui?
- E como é?
- Preto, tela grande, coração de pedrinhas brilhantes. Inconfundível.
- Deu sorte, menina, quem entrega essas coisas hoje em dia?
Verdade pura, pensou. Antes de sair agradeceu muito e viu plástico colado no vidro da janela que versava:
“Nada é por acaso!”

Aquela frase lhe chamou a atenção de um jeito que até parecia sinal sonoro tocando pra saída! Ah, e era o sinal mesmo! Ficou imaginando o que havia feito pra esse dia ter sido tão especial... Mesmo sem expectativa de coisas boas pra hoje e ter vindo de um final de semana tão ruim.

Como que por milagre ou coisa assim lembrou-se de uma cena na sexta de madrugada em que encolhida entre seus travesseiros e edredom fez uma prece em meio as lágrimas:
‘Por favor, preciso de uma nova chance!’

Será que a prece sincera a salvara naquela segunda feira linda?
Sendo isso ou não nunca saberia, o fato é que decidiu aproveitar o ensejo e seguiu o fluxo da vida, afinal, alguém em algum lugar deveria amá-la mesmo!

Wendel Bernardes.

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

A Fuga...



Ele atravessa o farol vermelho criando uma grande confusão atrás de si. Gritos e palavrões dos transeuntes são ouvidos, mas sua preocupação é maior... ele sabe que seu carro compacto não foi feito praquilo. Olha desesperadamente pro retrovisor e sim, o sedan negro ainda está lá na sua cola.
Enquanto pisa fundo no acelerador sem a resposta desejada abre-se uma tela dolorosamente real em sua mente.

Imagens em tons de sépia porém de um passado recente. Seu estômago se embrulha e não é por conta das manobras arriscadas que faz nas ruas apertadas do Centro do Rio. Desejaria que todo o seu passado ficasse enterrado, mas certamente o ‘paleontólogo’ do sedan negro achou certos ossos secos escondidos e quer algum tipo de vingança.
‘Paleontólogo’? O que estou dizendo?
Decide acelerar ainda mais sem resultado então a única coisa a se fazer em sua mente é despistar seu algoz. Ganhar tempo, quem sabe até para buscar veículo mais veloz.

Para seu carro num semáforo e nota bem perto um estacionamento público onde percebe carro esporte, janela aberta, som ligado e ninguém com cara de dono próximo. Não poderia ficar muito tempo a decidir... Leva coisa de dois minutos para trocar o carro e em sua fuga deixa curiosos os camelôs que desfrutavam dos batidões que vinham do som interno do esportivo.

Não há sinal do perigoso sedan negro, apenas carros piscando pedindo passagem, em alucinada febre. Tudo para nada! Minutos depois estão todos em engarrafamento na altura do Caju, Zona Portuária do Rio. Nem ar condicionado ligado o faz parar de suar e o tremor das mãos indica que o medo continua presente em sua vida.

Ainda ontem estava tudo bem. Lembra-se dos filmes que assistiu com seus filhos em casa e do jantar que sua esposa lhe servira. Tudo a contento. Mas agora isso significa pouco, os fantasmas lhe assolavam.

Ficou tão absorto que quase tomou o caminho de casa. Se ligou a tempo que estava num carro roubado e que a esse momento as câmeras da administradora da Avenida Brasil já teriam lhe filmado dezenas de vezes.
Precisava se livrar do carro e pra isso decidiu usar um ponto cego das câmeras. Havia um espaço bom e muito ermo entre Deodoro e Realengo, logo abaixo da Avenida. Câmera alguma, pouquíssima luz, e apenas uma pista de acesso à Avenida... Perfeito!

Estrategicamente saiu do carro e com sua camisa que usava por cima de outra limpou maçaneta, painel, volante... deixou absolutamente tudo ‘limpo’ de digitais. abandonou o carro roubado, lançou a chave longe.

Agora usando apenas a camisa de baixo, andava bem longe das possíveis câmeras da prefeitura. Não poderia simplesmente voltar à pista por isso mais uma vez agiu por instinto. Tomou um taxi que o deixou a três quilômetros de casa. Era um bairro movimentadíssimo de subúrbio, principalmente no verão onde todos saem às ruas.
Não há sequer sinal de alguém à sua cola. Ou conseguira despistar bem... ou estava mais uma vez fugindo de nada!!!

Minutos depois chegou em casa e a cena familiar suburbana clássica se apresentou. Seu filho menor lhe abraçou em festa, e checou-lhe os bolsos como que procurando um chocolate, bala ou souvenir. Sua filha adolescente de frente ao PC mal lhe olhou. Sua esposa com feições de exausta terminado o jantar lhe perguntou em tom de curiosidade:
- Demorou...
- Vou tomar um banho, estou com calor...!
Aparentemente tudo normal, ninguém lhe seguira, sua família estava bem. Estava preocupado a toa. No banheiro, de frente ao espelho tentava bolar mais uma desculpa pelo atraso, e ainda faltava explicar a ausência do carro.
Nem me lembro onde deixei... as rugas lhe surgiam numa velocidade incrível. Tudo resultado de seus erros e das mentiras frequentes que contava para encobrir seus pecados.

Mas era mais fácil assim, mesmo nessa cruzada inacabada e doentia. Amanhã será mais um dia... não sabe se será perseguido por mais um sedan, por moto, por gente a pé, ou somente pelos seus temores e demônios, mas essa foi sua escolha, melhor assim!
Prefere a tormenta do que revirar túmulos e expor fantasmas. Não poderia jamais mudar o passado, mas decidira moldar o futuro como se fosse um oleiro sempre fazendo obras a partir de cacos velhos de barro. Essa é sua vida e não está aberta a visitação... de ninguém!

Mas... será que esse 'passado' de fatos trumáticos e escondidos fora real? Será mais um fruto de sua mente angustiada?
Perguntas sem respostas, guardadas à sete chaves numa mente caótica!

Wendel Bernardes.

sábado, 10 de novembro de 2012

Mudanças da Estação.




Quando chegou o outono ela decidiu mudar sua vida. Não sabia ao certo se era por causa do clima ameno e da melancolia das folhas mortas espalhadas no chão, mas era fato que a estação não foi escolhida por acaso.

Levantou-se uma manhã a ao abrir a janela sorriu estranhamente. Não era um sorriso de alegria, nem mesmo ironia ou coisa assim... Apenas sentiu o vento frio, seco e contínuo cortando-lhe o rosto. Aquilo lhe servia de energia, uma confirmação do que estava em seu coração para fazer.

Lavou o rosto, arrumou-se de seu jeito urbano e adorou o que vira no espelho. Era simples o bastante para manter em sua bolsa apenas o necessário (o que na cabeça da maioria das mulheres era algo inconcebível). Conferiu coisa ou outra e saiu do quarto decidida como nunca.

Ao passar pela sala acenou sutilmente com a cabeça aos presentes. Um senhor bigodudo, calvo e ranzinza, ainda folheando seu jornal matinal resmungou:
- Procure não voltar tarde...
Ela nem sequer respondeu.
Foi aí que uma senhora magra de cabelos encaracolados e ruivos, vestindo estampa que parecia ter saído de figurino que retratava a Era Vitoriana disse:
- Mas o café é importante, você precisa tomá-lo... Sente-se aqui...
Ela fitando sua mãe como que assistindo a uma reprise chata apenas disse: - ‘Não’!

Enquanto cruzava já a varanda lembrou-se da noite de ontem, das palavras duras do pai e da omissão da mãe em lhe proteger. Hábitos cíclicos! Não era moça de coisas erradas, mas as palavras e as omissões a feriam cada vez mais...
Eram imagens e sons que preferia ocultar da mente jovem, porém acostumada aos sofrimentos caseiros.

“Palavras duras em voz de veludo e tudo muda; adeus velho mundo...” foi fazendo dessa canção seu hino que decidiu que jamais ouviria mais uma vez o que ouvira na noite anterior. Passou pelo portão sabendo que não seria a ultima vez que o fazia, mas o fez de um modo que nunca mais voltaria a fazer.

Olhou na bolsa, juntou os cartões, passou no banco sacou o que tinha. Adquiriu até empréstimo com os juros que tanto adiava. Deu uma graninha razoável. Afinal tava trabalhando duro havia um tempo e juntou em seu cofrinho de confiança, grana para suas emergências costumeiras. E não foram poucas.

Agora era apenas ela e só!

Comprou jornal, sentou na praça e olhou os classificados. Nada convidativo. Era inteligente a ponto de saber que não poderia fazer nada que não fosse ao seu alcance. Todos os aluguéis estavam salgados demais. Pegou o celular e ligou pra alguns amigos... Mas nada.  Ninguém poderia lhe ajudar. Costurou na boca um semi-sorriso. Sabia que aquela tarefa amigo algum poderia lhe ajudar mesmo. Era coisa pra ela e só!

Sem se desesperar saiu em busca de alguma placa, ou faixa que sinalizasse sua liberdade. Meio sem perceber entrou numa van e deixou seus instintos lhe guiarem.  Saltou coisa de dez ou quinze minutos depois num ponto em uma estrada conhecida. Não sabia bem se já passara ali com amigos, ou a trabalho...

Guiando-se em seus costumes viu plaquinha mal escrita, convidando ao aluguel de quarto simples para solteiros. ‘Eu mesma’, pensou!
- Bom dia.. Disse pra alguém na varanda.
- Sim? Respondeu uma velhinha.
- A vaga está preenchida?
- Da casinha? Oh não... é pra você?
- Na verdade, sim... posso ver?
- Claro, será um prazer... só um instante.

Entrou, calçou sandálias gastas, passou as mãos no cabelo ondulado e posto em coque e posicionou os óculos pesados e de grau.
- Me acompanhe minha filha...

Era um corredor de piso simples, a cara do subúrbio, feito de caquinhos de sobras de pisos e azulejos de obras anteriores. Basicamente vermelhos. Abriu porta regular de madeira antiga, com o ar que se deslocou sentiu um perfume que lhe fez fechar os olhos: era madeira de sândalo. ‘Porta antiga, madeira boa...’
Essa frase seria dita por seu avô, que era carpinteiro desde menininho e quando viu nascer seu primeiro neto, que na verdade era ela, quis ensinar os detalhes da profissão.

Sabia a melhor madeira pra quase tudo, e como não conhecer um cheiro tão familiar?
Abriu os olhos e deixou pra trás aquele instante que lhe lembrou do homem que mais amou na vida!

- Filha? Tudo bem? Parece distante?!
- Desculpe, lembrei de alguém... mas já passou.
- São nossas lembranças que nos fazem quem somos sabia? Guarde-as sempre com você!
Fez daquela frase de efeito seu lema praquele dia.

Olhou a tudo em volta e era bem pequeno. Pequeno a ponto de com poucos passos cruzar toda a casinha. Como tinha pensamento positivo logo disse pra si mesma; Melhor assim, haverá pouco trabalho na hora da limpeza.

Por milagre ou não, alguma mobilha ainda poderia ser alugada junto da casinha. Um velho baú para roupas revestido com pátina provençal. Uma cama de casal de madeira clara e uma mesa antiga, com cara de anos setenta com visual quadrado e pés fininhos.

- Quanto custa?
- Quanto você pode pagar?
- Um pouco abaixo do mercado...
A velhinha olhou-a de cima a baixo como que a sondando, disse:
- Fechado, você num tem cara de caloteira, nem dessas bandidas doidas que rondam a cidade. Tem cara de menina de família.
‘Família’... essa palavra de novo, pensou meio amargurada.

Aquilo parecia o tal milagre que vovô sempre lhe falava. ‘Olha eu pensando no vovô de novo...’
Agora era só pegar suas roupas e viver o primeiro dia do resto da sua vida. Deu um sentimento estranho em seu interior. Era mistura de medo de dar errado, com o medo da liberdade. Ta... era tudo medo, mas eram medos diferentes, né?

Assim que pegou as chaves e pagou a tal da luva pra senhoria, deitou-se no chão de tacos de madeira, com os braços por detrás da cabeça e pensou lá longe em sua trajetória.
Sua vida estava definitivamente sendo reescrita e dessa vez era ela quem manuseava a caneta.

Olhava para o teto com simples arranjos de gesso antigo (foi aí que notou que tudo precisava de boa pintura), mas logo seu olhar atravessou o teto. Estava no infinito. Não pensava em ninguém, não estava ali por causa de ninguém... aquela era hora de se curtir, de se conhecer, de ser ela mesma.
Que solidão que nada, ela estava era querendo se encontrar!
Sabia que não seria fácil, mas pra alguém que sempre se virou na vida, mesmo debaixo das asas dos pais, isso seria menos ruim.

Pensou nas possibilidades, esqueceu das coisas que passam na TV e do glamour que a mídia passa em morar sozinha e sorriu. Agora aquele sorriso era mais maduro, mais definitivo. Ainda num era de alegria, também num era também de ironia, mas era a certeza que a felicidade tava pra chegar.
E quando a tristeza batesse na porta, era só fechar os olhos, lembrar do vento gelado de outono que a fez abrir suas velas e simplesmente: navegar!

Wendel Bernardes.

O trecho da canção usada no texto refere-se a música “CuideBem de Seu Amor” dos Paralamas.



segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Andando com Fé...




O sol surgiu depois de dias de tempo ruim com chuva fina. A tal da frente fria que veio do Sul não a deixou nem um pouco feliz.
Era carioca da gema, adorava se expor ao sol como ela mesma dizia; ‘Sol recarrega as baterias’. Sua vó tinha outras teorias, achava que era coisa de lagarto... adora ficar numa pedra “quentando o sol”. De fato parecia coisa de bicho de sangue frio, viu?
Mal secou a laje e lá foi ela “se bronzear”.

No kit bronzeamento não poderia faltar um baldinho pra jogar uma aguinha vez em quando, uma daquelas caixinhas de som cintilantes (e barulhentas) que comprara na Uruguaiana pra ouvir seus ‘batidões’ e o principal... um preparado líquido que quase efervescia. Base de óleo mineral pra dar liga, essência de jasmim pra deixar a pele perfumada, pó de café e extrato de urucum pra dar a cor. Meu Deus, que algum dermatologista apareça por lá... senão será queimadura de todos os graus!!!

Era feliz assim, curtia uma balada, namorava ‘pra dedéu’ e dançava como poucas. Podia vir de tudo; samba, pagofunk, forró, baladão sertanejo... Sabia de todos os passos e as letras estavam na ponta da língua. Só dava uns moles nas letras em inglês, nessas ela mandava um ‘embromation’ mesmo. Importante era curtir!

Aprendeu com a tia Neuza, integrante da velha guarda da escola do coração e presidente de honra da Associação de Moradores da Comunidade a se virar fazendo cabelos.
Topava de tudo um pouco nessa empreitada; era prancha, escova de chocolate, morango e outras frutas silvestres (com muito formol, claro), queratinização, tintura, babylyss...
Fazia tranças nagôs, dreadlocks e coisa e tal. Num gostava muito era de cortar o cabelo das clientes. Sempre dizia que era porque errava a mão, mas na verdade é que cabelos curtos significava serviços mais simples, né? E como ela num era boba nem nada...

Um dia voltando num baile notou uma movimentação já tarde da noite na casa de uma vizinha. Curiosa como poucas, foi lá conferir. Descobrira da pior maneira possível que era uma boa amiga sua, mais ou menos da mesma idade que acabara de fazer ‘a passagem’.
Menina nova, parceira de muitas festas (e de algumas pegações) teve uma síncope do nada e sem mais nem menos “cantou pra subir”.

Depois do impacto habitual chorou litros.
Claro que sentira a morte da amiga, mas o que mais lhe marcara era a forma precoce de morte. “Sem aparente explicação, jovem e saudável... poderia ser eu!”

Foi aí que começou a pensar mais na vida, no futuro e a se cuidar do jeitinho que achava melhor. Cortou a cervejada, o excesso das festas e deu um tempo nas gorduras dos churrascos, até na feijoada das sextas com pagode de mesa deu uma maneirada.

E não fez só isso, aproveitou a vibe filosófica da tia Neuza que dizia que “seguro morreu de velho” e procurou auxilio espiritual. Foi na paróquia da comunidade e conversou com o padre; queria saber se ‘terminara suas obrigações com Deus’... Na cabeça dela essas coisas eram iguais a cartão de vacinação, se não estiver em ordem o bicho pega... Deus me livre!

Aproveitou o ensejo e foi logo no pai Toninho, o pai de santo da favela. Lá, entre baforadas e tambores, queria fechar o corpo, mas abrir os caminhos... Enfim, qualquer coisa que a deixasse ao menos conhecida dos orixás. Tudo foi feito segundo os seus desejos.

E como ninguém é de ferro foi também na Igreja Renovada Pentecostal do Bate Coxa pra ver se dando o dízimo deixaria Jesus ligado de que era boa moça. Se Jesus gostou eu num sei, mas o líder de lá...

Fora isso aproveitou a oportunidade e dançou com as batucadas dos Hare Krishinas mo Largo da Carioca, tomou passe no Jorei Center do bairro, jogou flores pra Yemanjá, frequentou showmissa carismática e tomou água fluidificada da oração das seis da tarde do homem de jaleco branco da TV.
Uma coisa te digo, disposição ela tinha, e como tinha!

Depois de tudo ficou mais confusa que nunca. Tudo bem que segundo sua visão agradara todos os deuses das religiões mais em voga, mas qual seria seu destino no ‘além vida’?
Iria pro céu dos crentes? Reencarnaria numa forma de vida mais evoluída? Vagaria sem luz? Iria ao paraíso?

Naquela noite nem pôde dormir, era como se esperasse a ‘morte acordada’, ficara chocada! Rezou, acendeu vela, fez mini-jejum... Tudo, tudo!
Lá pras tantas dormiu. Fora vencida pelo cansaço! Até hoje ela nem sabe explicar o que aconteceu depois, só jura de pés juntos que num pôs um gole de coisa alguma na boca!
Mas vira uma luz e no meio dela ouvira uma voz potente, porém branda, amável que lhe chamou pelo nome e perguntou o que ela procurava
- Eu procuro paz, respondeu.
- Que tipo de paz? Retrucou o Ser Iluminado.
- Paz eterna... Ei, não que eu queira ir agora, eu tô bem por aqui mesmo, tá? Mas penso no futuro, né?
- De tudo que você procurou, o que te deu paz?
- Quer saber? Senti paz em nada, viu? Tudo me confundiu mais a cabeça... Era ‘obrigação’ daqui, compromisso de fé dali... Mas sossego que é bom, necas!

A voz pausou e ainda mais docemente disse:
- Tudo que você precisa é entender que o seu coração, que é o seu entendimento, deve se entregar completamente a quem te faz sentir mais completa, a quem te trás vida! Vida abundante!
E continuou dizendo:
- Não há nenhum preço a pagar que já não tenha sido pago... Nenhuma obrigação que já não fora feita, ou ainda esforço senão o de entender que você é extremamente amada. E que é importante da maneira que você é, e o resto está consumado!

Dito isso silenciou a voz, a luz se apagou e ela pulou da cama, pois tava atrasada para a primeira cliente do dia... No caminho ficou pensando no sonho, aquela voz lhe tirara o medo de ‘partir’ e estranhamente lhe deu paz. Olhou para o céu e viu que o tempo iria virar de novo.

Quer saber? Chovendo ou fazendo sol o negócio e ser feliz e ter paz!
Prosseguiu na vida e procurou obedecer à voz, afinal
“Andar com fé é bom,
Que a fé não costuma falhar..”

Wendel Bernardes.









quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Valeu...




Corria na orla enquanto uma chuva fina caía em seu rosto. Não morava perto do mar, mas essa era sua rotina. Cruzava boa parte da cidade de transporte público só pra curtir esses momentos. Como vinha da Zona Oeste começava por São Conrado.

A vista linda, a espuma perfeita, o cheiro do mar... Nada poderia lhe fazer deixar de viver esses momentos. Aquela era a sua fuga, sua sala de análise, sua terapia. Nada do que poderia ouvir de um profissional de psicanálise lhe traria tanta paz quanto respirar aquele ar, endorfinar às vezes ao som do vento, às vezes tendo por companhia um classic rock que trazia em seu player.

Quem o vê de longe não sabe quantas dores seu corpo é capaz de suportar, quem o vê correndo nem sequer imagina os demônios que carrega consigo.

Aos 12 viu seu pai morrer pelas mãos de um velho amigo da família.
Era final de tarde e a música do pequeno rádio de pilha fazia fundo para a desgraça que seu ‘padrinho’ lhe causou. Três tiros no peito e seu único amigo se foi.

Sua mãe não bancou a sina de ter seu marido assassinado. Crime passional, diziam todos. Disseram pra ele que seu pai ‘amava demais’, era outro têrmo pra quem (como se diz no subúrbio) 'pula a cerca'. A pressão fez sua mãe fugir e lhe deixar como única vítima do descaso.
Pressão? Não seria vergonha??

Aos 12 anos virou homem. Foi criado por ele mesmo. Chegou a furtar pra matar a fome, cheirou cola pra simular calor. Tanta coisa lhe aconteceu até os 14... Quando tudo na vida dele rumava pra virar mais uma estatística, lhe viu chegar de manso um homem de meia idade, roupas modestas porém limpas e dignas.
Usava barba rala e nas mãos uma sacola plástica translúcida. Nem precisava abrir tudo pra saber o que tinha na sacola. O cheiro lhe socou o rosto: comida!
O homem chegou de manso como quem quer catar bicho fujão na rua e lhe deu a mão apresentando-se.
Nem ouvira nome ou coisa assim. Havia acabado de fumar um baseado e a fome de dias lhe foi potencializada à mil. Comeu como bicho fujão... afinal o senhor chegou do modo certo.

Algumas semanas se passaram nessa rotina agonizante até que ele perguntou:
- Quem é tu?
- Marcos... e você?
- Tu escolhe... muleque, pivete, vaporzinho, dimenor...
- Mas qual é seu nome de verdade?
- Pedro.
- Sabe o que significa o seu nome, cara? Quer dizer ‘pedra’, sabia?
- Devo ser pedra ‘mermo’...
- Mesmo!
- Oi?
- Se diz ‘mesmo’ com ‘s’...

Naquele bate papo informal depois de semanas de quentinhas e lanches, nasceu uma amizade incomum. Marcos era professor universitário, separado por duas vezes da mesma mulher. Nunca tivera filhos, sempre sonhou em tê-los.

Pedro, depois de algum tempo, ganhou mais que apenas comida pra matar a fome doida. Ganhou instrução, oportunidade, um teto, carinho e atenção.
Depois de uns anos, já com 16 pra 17 um dia perguntou ao seu salvador: “Posso te chamar de pai?”
Marcos jamais sentira tanta emoção. Aquela frase suplantou cada coisa por ter abrigado um pivete em casa. Foi chamado de louco por se intrometer... Disseram que os adotivos sempre vão embora ao final. Foi até acusado de pedofilia!
Seu coração era vazio de um filho, e a vida lhe trouxe um que buscava o amor de um pai.

Seus finais de semana eram à beira mar. Ali jogavam bola, comiam peixe na brasa, ouviram música nas rodinhas que se formavam nos luaus.
Mas Marcos também se foi. A vida permitiu que ele e Pedro caminhassem pouco, porém de forma intensa! Foi levado por sua saúde meio fraca. Quem sabe por conta das madrugadas perdidas ‘dormindo’ sobre os livros pra poder se formar.

Hoje mesmo sem seu pai do coração, a outrora pequena pedra agora feita em rocha, corre no lugar onde se sente mais à vontade pra matar a saudade e de certa forma agradecer àquele homem honesto e simples que com amor o fez vencer.

A chuva desse dia nem o incomoda mais. Nem mesmo a distância percorrida. Olha só, já estou no Leme, pensou! Está mesmo longe de onde começou a corrida. Longe mesmo foi onde chegou na caminhada que não deve acabar tão cedo.
Ele sorri de olhos quase cerrados e diz em palavras baixas:
“Valeu...PAI!”

Wendel Bernardes.


(Canção sugerida pro texto Meu Guri - Chico Buarque)

sábado, 27 de outubro de 2012

Caótica Ordem..



 (Foto de Pub fundado em 1546)

Tudo havia virado ‘meio que’ um caos generalizado. Mas dentro do possível ele estava tranquilo. Aprendeu que existem coisas na vida que não se pode mudar. Que fogem das alçadas, então simplesmente, com seu jeito ‘sui generis’ de ser, relaxou. Pelo menos tentou.

Sua vida era uma sucessão de momentos dramáticos como atos de uma obra ainda inacabada de Shakespeare. Desencontros, sangue, traições e amores tórridos, não necessariamente nessa ‘ordem’. Alias, falando nisso, ele tinha uma teoria a respeito de ‘ordem e caos’, baseada em sua própria existência, que diferia muito das opiniões dos demais.
Era tudo amalgamado em seu coração anestesiado pela vida. Por conta disso costumava dizer que a ‘ordem’ de sua vida era dominada pelo ‘caos’.

Por conta disso fugiu de tudo. De absolutamente tudo mesmo!
Fazia parte de uma minoria. Era herdeiro de uma grande soma em dinheiro, pois vinha de uma linhagem muito bem sucedida no comércio. Mais velho de quatro irmãos, largou seu próprio posto de ‘príncipe herdeiro’ nas mãos da família, juntou a grana que pôde e sumiu.
Mas claro que sumiu com estilo, né?

Ninguém o encontrava fazia anos. Decidiu fazer exatamente o mais óbvio (segundo sua mente caótica). Enquanto todos o procuravam nos lugares mais distantes e que cabiam ao seu nicho social, ele estava pertinho, praticamente ‘nos quintais de casa’; como ele sempre dizia. Mas isso apenas nos primeiros meses. Esperou a poeira baixar e sumiu de vez!

Construiu uma (boa) casa no meio do nada na área de Serra do Estado do Rio. Imagino as várias perguntas que o arquiteto fez a si mesmo.
A casa, embora muito bem localizada para poder captar o ar corrente e a luz do sol, era quase inacessível. Deram-se ao trabalho de construir pequena estrada para passar o material de construção e depois, simplesmente reflorestaram-na para encobrir os rastros de tudo. Os mais observadores que enxergavam sua casa na encosta de uma grande montanha ficavam horas imaginando por onde alguém poderia passar pra chegar lá. Excêntrico, astuto, caótico...

A casa não possuía eletricidade, usava apenas velas, lanternas a gás ou coisas do gênero. A água vinha de uma pequena cascata que nascia uns cem metros acima na mata. Sem internet, sem TV a cabo, sem ar condicionado...
Mas não pense que ele estava em completo ócio. Na verdade esse modo de vida quase medieval era dificílimo de se manter, principalmente quando se esta só.
Preparar um alimento era uma verdadeira cruzada. Inicialmente vivia quase que de caça, mas na escassez de tudo decidiu virar vegetariano, tudo por conveniência.

Uns anos depois cansou da vida de eremita e foi morar na Europa, mais precisamente num chalé no sul da França. Não se acostumou e buscou algo mais cosmopolitano. Imagine; logo ele!

Foi pro subúrbio de Londres e era uma zona em plena ebulição, mas até lá agia como fugitivo. Não se relacionava, nem ‘Bom dia, nem Olá’... Fazia tudo em horários alternativos. Dormia de dia, vivia de noite.

Numa cidade como Londres, mesmo em seus subúrbios, há uma estrutura invejável de comércio e tudo mais. Cada ‘lugarejo’ é um microcosmo de possibilidades, mesmo com aquele ar interiorano. Quando necessário ia às compras no meio da madrugada. Ah, ele não era mais vegetariano, diga-se de passagem.
Andando sozinho com um longo sobretudo negro, virou quase uma lenda urbana, o homem das sombras ou coisa assim. Curtia tudo isso!

Mas mesmo com suas fugas e adaptabilidade, esqueceu-se de que ‘o caos poderia propor nova ordem em sua vida. ’ Foi justamente onde menos se poderia imaginar que ele reencontrou um sentimento que jamais queria ter de novo: o amor!

Era uma noite fria e decidiu ir a uma pequena loja de conveniência a uns quinze minutos a pé de casa pra renovar seu estoque de comida. Seguiu pé,  praticamente estrelando um conto extraído de um romance europeu do século XIX, estava sozinho na rua, enquanto brisa vinda de lugar algum lhe cortava o rosto nu.

Foi um alivio quando entrou na loja, em todos os sentidos! No balcão moça de uns trinta e cinco anos aproximadamente, cabelos negros, olhos azuis profundos, rosto simples e completamente absorto em seus afazeres. Desviou o olhar, mas de quem? Ela nem sequer o vira. Simplesmente o ignorou.

Ficou abalado pela presença da moça e fez as compras mais loucas do mundo. Veneno pra rato, batata frita, molho pra carne, saponáceo, alguns chicles de menta, tintura pra tecido e escova de dentes... rosa, pois nem cor vira. Encheu seu cesto do que tinha pela frente, sua mente nem agia, estava entorpecido pela bela visão da moça simples.
Pagou as contas, voltou pra casa e na madrugada seguinte voltou a loja.

Coisa que ele fez noite após noite ao longo dos meses. É claro que agora ela o notou, mas nada além disso. Porém ele está cada dia mais entorpecido de paixão. Mas não ‘se lança’ e nem quer agir assim. Decide que é melhor dessa forma. Ele já sofrera demais e já decidiu jamais complicar-se de novo com uma relação como de costume.

Ele a olha nos olhos profundos em microssegundos, enquanto ela não o nota, respira seu perfume levemente adocicado, ouve toda a madrugada sua voz baixa quase entediada contando cada item das compras e no final ouve: “Obrigado, volte sempre!”
Como poderia deixar de atender a esse pedido?
Em seu mundo agora até o caos faz sentido!

Wendel Bernardes.

(Texto inédito)

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

O Familiar Senso do Desconhecido...



Era lugar amplo de altíssimas paredes.
Galpões com lajes espessas, salões com telhas galvanizadas, ou de amianto; algumas ainda inteiras.
Tubulações gigantescas expostas cortam paredes por centenas de metros.
Clima estranho, quase pós-guerra, meio ‘cinema catástrofe’.
Não... talvez apenas tenha resistindo a violento incêndio e saques contínuos.

Embora minhas divagações não ficassem por aí, tenho certeza apenas de uma coisa... Não faço sequer a mínima idéia de como cheguei aqui; e é claro, reverbera uma pergunta na minha cabeça: “O que estou fazendo aqui?”


Continuo caminhando com meus devaneios, ou dúvidas, mas a curiosidade me impede de ficar parado. Quase que por instinto vasculho pátios, antes-salas, mais e mais salões. Exploro com cuidado, pois tenho sensação de não estar completamente só. Não me parece aquela impressão de estar sendo seguido, mas sim de estar sendo observado.

O cheiro é forte demais, lembra amônia misturada a algum cheiro ocre... mas num certo salão o cheiro mais parece com o habitual odor das queimadas. Tudo se explica quando noto as manchas negras em formato de tiras nas paredes altas anteriormente tingidas de branco. O rastro destruidor do fogo!

Nalgum momento noto sons conhecidos, burburinhos, passos, ruídos de manejo de objetos e utensílios. Mais uma vez minha curiosidade me leva a seguir... porém desta vez sigo pra buscar os sons. Mas é pela primeira vez que o medo também me acompanha.

Se não sei onde estou, deveria também desconfiar de quem estaria lá? E porque estariam lá? Essa é minha neura, minha incerteza. Mas o mesmo pensamento cai quando penso; ‘Se não sou hostil, porque eles seriam?’
Nada faz sentido. Muito menos meus pensamentos, meus nexos!

Comecei a vê-los aos poucos. Eram rostos desconhecidos estranhamente familiares. Estávamos de longe, como que numa análise em dois atos. Eu curioso, eles me ignoravam. Vestiam-se de forma casual, uns como se estivessem em casa, outros como se fossem trabalhar. Nada muito sofisticado. Aí me pego pensando; ‘Porque estariam produzidos para estar aqui?’ então acho mais que normal as casualidades.

A visão que mais me chama a atenção até então é de uma senhora, com feições distintas e um pouco mais produzida que os outros, sentada numa cadeira plástica cercada por mais dois ou três, simplesmente trajados. Os outros olhavam dissimuladamente: ela, porém me fitava quase que nos olhos mesmo em sua distância.

Então vi salas maiores, e tinham uma espécie de escrita em seus umbrais. Adentrei e só vi as mesmas coisas que antes tinha visto. Destruição, entulho, sujeira e o cheiro ruim fechava tudo com chave de ouro. Fui à sala ao lado por curiosidade, e à outra também... Nesse momento penso: ‘Porque estou singrando sala a sala?’ Nada me parece saída, mas um elo a outra mesmice!

Foi quando percebi certo casal. Ele assentado numa longa mesa, de costas, como que numa refeição comunitária. Ela, acariciando seu ombro, de costas pra mim, de frente para as costas dele.
Estavam estranhamente felizes, como ninguém ali estava.
Notei que a felicidade deles me incomodou. Quase me feriu. Mais uma vez estranhei tudo, mas não duvidei de nada. Era tudo curiosamente real nessa complicada ficção!

Então, como que de súbito, enegreceu-se a cena, o cheiro mudou, senti frio.
Meus olhos cerrados se abriram e notei meu teto, meu edredom, meu quarto. Um sonho?
Era um sonho, mas ainda sentia os cheiros, até poderia ver as cenas ainda. Era como se eu fosse levado até esse lugar e depois trazido de volta.

As perguntas permanecem, só que com contornos diferentes. Agora não é mais ‘onde estou?’, mas sim ‘onde fui?!’ Aquele lugar desconhecido existira? Vou conhecê-lo? Já estive lá?
A sensação de dèjà vù continua durante o dia, como um sabor que não me deixa a boca. Curioso, estranho, e de certa forma, até saudoso.
Mas a sensação que mais me persegue agora é que sei de tudo, e só não estou fazendo as conexões certas.

Wendel Bernardes.


(Texto inédito)

sábado, 20 de outubro de 2012

A Esperança de Onde Menos se Espera...

Esta manhã ele acordou demasiadamente frustrado. Os últimos dias foram duros, na verdade foram insuportáveis. Não estava mais em casa, mas a sensação era a mesma. Só se deu conta de que não estava mais lá, pois o teto era diferente. Ele abriu os olhos e se viu perdido, sem referência. Quem sou eu?

Ontem mesmo, quando ainda estava com seu ‘amigo’ depois da briga, parecia vivenciar um pouco melhor a vida, mas acordar ali o fizera desconsiderar seus caminhos, pelo menos agora pensava assim. Mais nada era definitivo nessa sua vida indefinida por si só!

Talvez tudo tenha começado em sua infância, onde seu pai truculento lhe dava amor apenas em pancadas. Amor em pancadas? Claro, assim iria endireitar-se, já viu homem se formar sem porrada? Bom, foram essas porradas que agora o fazem lembrar-se de seu velho com tanta amargura.
Porque minha mãe nunca tomou coragem e me defendeu? Talvez porque ela mesma tivesse medo de que aquele ‘homem’ que o pai dizia não se formasse nem com porradas, nem com palavras de amor e afetuosidade.

Mas pensar nisso não o fazia mais feliz, na verdade o tirava do sério. A tristeza que antes sentia de sua família, agora se tornou uma mágoa tão profunda, tão densa e tangível que parecia que apenas a Mão de Alguém poderia arrancá-la de lá. De onde? Do peito!

Quando ele decidiu contar o que se passava em seu coração, na verdade não queria ‘libertar-se’, mas apenas contar com a compreensão de todos. Queria ajuda, abrigo, guarida.
Agora sente-se um verdadeiro idiota. Como poderia imaginar que teria atenção neste momento, durante os vinte e três anos que vivera nunca os teve, porque agora? Martirizava-se por ser quem é. Ou, por ser quem forjou-se.

Quando mais jovem, talvez uns dois ou três anos antes, buscou num amigo, opinião sobres seus sentimentos. Ele, o amigo, era um bom rapaz, religioso daquela seita protestante da esquina, conhecia-o desde a infância quando brincavam animadamente na frente da casa da família. Eram bons tempos, nada se passava pelo coração; sem perguntas, sem rumores, sem explicações...

Lembrou-se que, um dia disseram a ele que se abraçasse uma fé, e de preferência uma fé protestante que era a mais certa, poderia aplacar sua dor de ser quem a família temia que ele fosse. Então, conversando um dia com seu amigo, abrindo seu peito a ele, teve uma grande alegria quando o viu sorrir ao contar-lhe sua dor.
- Ah, é isso? Bom, isso não é algo tão ruim, apenas não deve ser contado a ninguém!
- Então quer dizer que devo viver assim, sem dizer quem sou? Sem fazer exposição do que se passa em mim?
Os olhos do amigo brilharam, enquanto suas mãos tocaram seu ombro agora tenso.
- Claro que sim, como você acha que eu vivo?
- Você ... você também?
- Sim, eu também! Disse com um sorriso ausente de satisfação, mas de vergonha.
Ele saiu dali, meio desorientado, meio assustado, afinal aquela piscadela que tomara no final da conversa, junto aquele abraço demasiadamente apertado não queria sair da sua cabeça. Foi assim que entendeu que uma religião legal, por mais certinha que fosse não fazia mais bem do que uma pedra no sapato.

Mas essas lembranças também não o ajudaram. Ele olha para o celular e percebe que não há ligações perdidas de ninguém, pensa se deve mesmo levantar-se ou se passa o resto desse fatídico sábado na cama chorando suas mágoas.

Até ontem estava em casa, será que fez errado em contar? Será que se voltar o papai me aceita? Afinal foi só uma comunicação desencontrada, ele nem tinha terminado de se explicar.
Enquanto mais aquela pergunta rondava sua cabeça, alguém bate à porta.
Como pode, só ‘moro’ aqui faz algumas horas, como me encontraram?
Quando ele saiu de casa, achou esse quarto de aluguel, não era lá grande coisa, mas estava limpo e era o que seu dinheiro do salário de ‘treinèe’ poderia pagar. Melhor do que a rua era sim, claro!

- Oi quem é? Disse sem abrir a porta.
- Sou eu, cara!
- Eu? Eu quem?
- Quer dizer que faz só umas horas que tu não me vê e já me esqueceu?
Ah, era seu ‘amigo’.
Entrou olhando para ele com uma cara de espanto. Esperou ganhar um abraço, mas nem uma olhada ganhou.

- Cara, que tá rolando? Não achou que iria ser diferente, achou?
- Claro que sim... num queria sair de casa!
- Eu também num queria que você saísse de lá, sei como é ligado com sua mãe...
- Era..
- Ok, ‘era’ ligado com sua mãe. Mas olha pelo lado bom...
- Qual lado bom, hein?
- Agora teremos mais... privacidade, entendeu?
Ele olhou seu ‘amigo’ com certo ódio, nunca quisera assim, na verdade, nunca quisera que fossem mais do que eram.
- Pode voltar depois? Num tô nada legal!
- Claro, te ligo mais tarde, afinal, vamos aproveitar a ‘night’ pra ver se você ‘se ativa’!
Ele estava falando da balada que frequentavam, mas ele num tava nem um pouquinho a fim de luzes piscantes, som de bate-estaca, ar condicionado insuficiente e bebida ruim.
Ele queria amor, conforto, carinho!
A balada estava sem graça, o ‘amigo’ passou de ser sem graça, aquele quartinho embora útil, estava pra lá do conceito básico de ser sem graça.

Era mesmo isso que queria?
- Que m&#d@ fui fazer, pensou.
Então, lavou o rosto pra num dar mole na rua, tinha chorado a noite inteira, sua cara num deveria estar boa pra se ver. Pôs uma roupa legal, que estava meio amassada na mochila de viagem que fez às pressas com seu pai ladrando em seu pescoço e foi pra qualquer lugar senão aquele!

Pegou um ônibus, bem vazio, era sábado e não tinha muita gente indo pro Centro do Rio, se deu conta que pegou o mesmo ônibus que sempre pegava para ir trabalhar...
- Que burro, putz!
Ficou lá olhando aquela cena que veria de novo na segunda feira, se a segunda chegasse e o encontrasse vivo pra tal.
Pois é, pensou em morte, já era...
Meu Deus, nunca sequer imaginei que iria pensar em fazer tal coisa, logo eu que amo a vida!
Foi quando passou por um outdoor que dizia: “Eu vos dou vida, e vida em abundância!” foi seu primeiro sorriso naquele dia terrível, mas foi de pura ironia, viu? Tanto que acordou o carinha do lado.
- Falou comigo?
- Não desculpe, só ri alto duma frase que li num outdoor.
- Qual aquele ali?
- É... esse mesmo. O rapaz do lado só pôde ler a mensagem, pois estavam parados num semáforo. Ele também sorriu.
- Ué, não sabia que era piada!
- Agora é, oras...! Riram juntos.

Assim começou uma conversa normal, sem nada além disso, então o cara do lado lhe disse;
- Sabe o que aquela frase quer dizer?
- Que se eu der o dízimo pra algum pastor a vida dele será abundante?
- Riu por demais enquanto dizia: - Claro que não!
- Quero dizer que um cara deu a vida para que você não precisasse morrer.
- Tá falando do Jesus dos crentes?
- Claro que não, falo do Filho de Deus!
- Qual diferença?
- O Filho de Deus, ama aos seres humanos mais do que amou Sua própria vida, pois morreu a pior morte só pra te ver assim sorrindo como agora! E sorrindo pra valer depois de agora.

- Mas você num sabe como eu chorei esta noite.
- Eu? Claro que num sei... num tava lá... riram de novo!
- Mas Ele com certeza viu! Aí, tu acredita que fui escalado pra trabalhar de última hora?
Ele pensou: O que isso tem a ver? Mas não disse palavra.
Então o cara do lado continuou;
- Eu acredito que fui chamado aqui de propósito!
- Como assim?
- Ué, você precisava entender que Jesus é a vida pra você, e se você decidir, Ele pode te fazer alguém feliz, de dentro pra fora!

- Cara, Jesus não pode me aceitar, eu sou...
- Chato? Já saquei, mas Ele é um cara paciente, viu?
Riram, depois ficou um silêncio no ar até que o cara do lado, antes de levantar-se falou assim;
- Se você quiser, pode repetir comigo umas palavras, que se você pôr seu coração nelas, serão as palavras que mudarão sua vida.

Ele imaginou que iria repetir alguma coisa como ‘abracadabra pé de cabra’, mas pagou pra ver...
- Então diga lá!
- Ok; Senhor Jesus, preciso ser aceito por ti e preciso que Teu amor me envolva.
Repetia baixinho, cheio de vergonha do mico de rezar no ônibus, claro!
Mas ao abrir os olhos, parecia estar mais leve, mais alegre. E de uma maneira que não há tradução nem no inglês pra essa palavra! Sacou?
- Bom, disse o cara do lado, já vou indo.
- É só isso?
- Isso meu velho, é só o começo, Ele tem muito pra fazer aí no teu coração, mas isso é um processo diário, é só deixar Ele te achar e te conduzir.

Ele achou estranho, mas aquelas palavras doidas faziam o maior sentido.
Agora se sentia melhor, pois não era o amor de um ‘amigo’ que lhe preenchia a vida, mas o amor de Cristo, que supera todas as adversidades.

Sabia que não seria fácil, mas nada poderia ser pior que aquela fatídica noite de ontem. Seguiu sua viagem sorrindo, já não estava mais só, quem o via de fora, podia visualizar um vulto de homem ao seu lado, era Jesus, seu mais novo amor, seu mais novo amigo. Verdadeiro amigo!

Wendel Bernardes.

(Postado originalmente no Blog Café Com Leite Crente em 04/04/2011)

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Norberto, o primo do Aroldo!




Foi numa família linda que Norberto nasceu. Era o terceiro de quatro filhos. A casa que vivia era boa, mas sem luxos. E a vida também era assim.
Papai e mamãe viveram uma linda história de amor. Foram separados pelas circunstâncias ao se conhecerem, mas havia tanto amor naquele primeiro olhar que ambos decidiram namorar mesmo a distância: por cartas.
Fora assim por anos a fio até novamente se reencontrarem. A vida e a história deles daria um belo filme, viu? Desses que o mocinho luta toda a trajetória para ficar com a mocinha no final.

Amaram cada filho de forma única.
O primeiro, Gualberto, lhes nasceu forte, bonitão e robusto; parecia o pai diziam todos!
A segunda, Alberta, era doce e linda como um raio de sol na primavera, era cópia da mãe, dizia vaidosamente a própria.
O terceiro, nosso herói Norberto, antes de nascer, passou por todo o tipo de dificuldades.
Mamãe teve gestação difícil, parto complicado e abreviado pra salvar tanto o bebê quanto a mãe. E o pequeno Norberto só sobreviveu por um milagre. Não era assim tão belo, mas fora igualmente amado, aliás, se cuidado era amor, fora ainda mais amado por todos!
O último, Humberto, era como todo caçula, o queridinho da mamãe, o garotinho do papai e o xodozinho dos irmãos.

Foram criados na fé Tradicional e Ortodoxa dos Crentes. Graças a Deus não eram barulhentos como os Pentecostais, nem ‘misturadinhos’ como os Renovados, dizia papai.

Na igreja todos eram amados. Pelo exemplo de amor e família, pelos filhos bem educados e belos. Tá bom que tinha o Norberto que não era lá essas coisas, mas beleza não se põe mesa não é?

Nos grupos sociais todos iam bem, só Norberto sentia-se infeliz.
Gualberto era artilheiro do time de futebol da escola, mas bem que poderia ser zagueiro com aquele corpanzil. Era papo certo entre 125% das turminhas femininas no recreio.
Alberta, ou Betinha como preferia, era ainda linda, mas também estudiosa, quase um prodígio. Como primeira da classe, havia ganhado bolsa de estudos para ela mesma e para seus outros irmãos, menos para Humberto que ainda estava nas fraldas.
Ah, é... Norberto ainda assim estava infeliz!

Não conseguia fazer amigos, não tinha atrativos físicos nem se sentia inteligente. Assim começou a duvidar da fé. ‘Que Deus é esse que fez meus irmãos tão belos, meus pais tão amáveis e a mim deu restos e sobras? Ninguém me quer’, pensava em sua angústia de vida.

Na E.B.D., sempre questionava a professora.
Jesus? Ah, ‘pfessora’ creio sim, acredito que Ele existiu, mas num era o Filho de Deus como vocês crentes ortodoxos pregam, não... isso, acho eu, foi invenção dalgum maluco!”
Por conta disso, era sempre convidado a ficar no corredor, pensando na infâmia que dissera.

Norbertinho não tinha o que queria e nunca quis entender bem isso, então bolou um plano de vida baseado na sua cabecinha infantil. ‘Vou comprar amigos!’ decidiu assim do nada!
Pensou que se pudesse destacar algo de bom nos outros, elogiando, bajulando, poderia fazer parte de qualquer grupo.

Ridiculamente, tentou primeiro com as meninas.
- ‘Oi, posso brincar com vocês?’ Disse confiante.
- ‘Claro que não, isso é brincadeira de menina, ta cego?’ Disse a mais meiga e educada.
- ‘Pôxa, que pena; vocês pareciam meninas tão inteligentes, tão bonitas que mesmo sendo menino pensei em vir aqui ficar com vocês!’
 As meninas se entreolharam... Acertara direto no alvo! Logo lhe entregaram uma boneca de pano, um lugar na rodinha da esquina e um apelidinho que prefiro ocultar.

Foi assim que viveu a vida inteira; agora andava com atletas, patricinhas, pagodeiros, riquinhos, roqueiros, pobrinhos, ‘geeks’ (os antigos c.d.f’s) e demais filões sociais. Era só ver um grupinho se reunindo que queria usar sua técnica para fazer parte da galera.

Na igreja também era assim, claro! Andava com todos, elogiava-os de inicio e já não ficava mais segregado no lado de fora das salinhas de estudos bíblicos, mas lá no fundo ainda não cria que Jesus era o Filho de Deus, pelo menos, não mais filho que ele mesmo deveria ser.

Cresceu, fez muitos cursos, frequentou várias universidades e trabalhou em tantas áreas de atuação diferentes quanto pôde. Tudo meio que simultaneamente. Fez também teologia, não que fosse por paixão ou vocação, mas não poderia esquecer-se de nenhum grupo a que pertencia. E se ficasse sem assunto no meio dos crentes? Fez tudo!

Mas é claro que queria dar um ‘ar só dele’ em tudo que participava, coisa característica dos desajustados sociais.
Com seus amigos não religiosos aprendeu a beber, a fumar e dar ‘uns tapinhas’ no ‘cigarrinho do demônio’, talvez daí tenha vindo tanta inspiração para as colocações que defendia nas rodas de amigos.

Fazia questão de dizer que “amigo não era quem concordava com ele em tudo”, mas Norberto deveria ter muitos amigos verdadeiros sim, viu? Afinal para aguentar tamanha chatice e discordância em qualquer assunto, só mesmo com amigos do peito!

A família continuava feliz. Com amor, beleza e inteligência e Norberto fazia questão de dar ‘pitacos’ em tudo. Nas roupas de patricinha de Betinha, na bola certa pra Gualberto usar, e até na alfabetização de Humberto, hoje homem feito.

Frequentava a igreja e também um bom boteco, fazia de sua liberdade, fruto da Graça, cavalo de batalha. Adorava dizer que era livre para todos, mas nunca conseguiu enxergar as cadeias da falta de amor que o prendiam. Gostava também de dizer que era membro dizimista da fé Tradicional e Ortodoxa dos Crentes, só pra dar uma base de referêcia pra quem quisesse, mas não que fosse assim tããããão ortodoxo, ok?

Tem levado a vida ainda hoje assim, quer fazer amigos em qualquer lugar, mas amá-los é outra conversa! Continua com sua luta contra Deus, acusando-o de injusto, negando a Jesus e a Graça até o osso.

Num dia teve um sonho. Nele Deus lhe aparecia e lhe dizia que tudo tinha um propósito especifico. Disse Deus; ‘Como você pode se sentir assim se de todos os seus familiares você foi o único a ser livre da morte desde o ventre?’
Sorrindo-lhe, Deus lhe apresentara Jesus...

Norberto acordou em polvorosa.
Que sonho maluco era aquele? Não acreditara em nada do que ouvira, embora fosse bem formado teologicamente, lhe faltava a base de tudo: fé, sem a qual ninguém enxerga a Deus.

Imaginou que o sonho era fruto da bebedeira com os amigos na noite anterior e seguiu seu caminhar, convivendo com a dor de ser quem decidiu ser desde pequenino.
Igual ao primo Aroldinho não tinha nada, apenas como ele criou um blog que tá na moda fazer assim. Vive por meio desse, ainda fazendo seus ‘amigos’ em grupos sociais dos mais diversos. Elogiando-os, bajulando-os de todas as formas e dando seus pitacos mesmo em coisas que não sabe, nem sequer quer aprender...
Que pena, Norberto.

Wendel Bernardes