segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

A Fera...



Seu semblante era fechado, sisudo. Ele era mesmo alguém grosso, ignorante e todos sabiam do azedume que lhe saborizava a vida.
Parecia o tipo de gente sem jeito. Passava por vizinhos e os ignorava completamente. Os pouquíssimos que se aventuravam em lhe saudar, por pura educação, ganhavam às vezes um sonoro rosnado, outras vezes apenas olhar gélido de canto de olhos.

No trabalho era básico...
Basicamente estúpido com o porteiro, basicamente grosso com a secretária, basicamente ‘equino’ com a auxiliar de serviços gerais. Do escritório no qual trabalhava apenas era ‘ameno’ com o pessoal da pagadoria, por motivos óbvios é claro!

Essa faceta de ‘homem de neanderthal’ afastava absolutamente todos de seu convívio. Uma vez recebeu convite em mãos de um amigo de infância para seu casamento que estava às portas. Defronte ao rapaz, sem a menor cerimônia, bateu a porta na cara do desafortunado!
Um rapaz novo no trabalho, possuidor da inocência dos desavisados, foi lhe convidar para um amigo-oculto de final de ano. Arregalou os olhos quando de abrupto notou que rasgara o convite (feito com esmero no paint) e lançara os restos mortais do mesmo contra as lentes de seus óculos. Até hoje o pobre desconfia que isso fora pegadinha dalgum engraçadinho.

A família não lhe liga, não lhe manda flores, nem sequer sinal de fumaça... visitar que é bom, nem pensar! Alias, outro dia um primo o viu vindo em sua direção próximo da orla, rapidamente arriscou a própria vida roletando entre a ciclovia e a pista principal, apressando o passo e fingindo ler algo importantíssimo no smartphone. Pra garantir, desceu os óculos escuros para sacramentar o ar ‘nem te vi’!

Surgiu assunto no trabalho tempo desses. O tema na fila do cafezinho era a vida privada de tão singela figura.
Casado? Jamais! Se alguma tola fosse pega nessa rede desavisada já o teria abandonado faz eras (glaciais)!!!
Gosto musical? Certamente peças de Chopin, Wagner ou Brahms... Jamais o suingue de um Villa-Lobos, claro que não!! E mesmo assim ainda sobre o assunto ‘música’ acertaram que ouvia por dia no máximo uns 15 minutinhos, pois nada poderia agradá-lo por tanto tempo.
Será que acertaram?

Ele chega a seu prédio exausto, o trânsito caótico do Centro à São Conrado o deixou tenso (como de costume). Na garagem do prédio antigo, deixa seu sedã na velha vaga, toma o elevador vazio ouvindo um trecho de um bolero instrumental que insiste em tocar pelo sistema de som do pequeno prédio.
Abre porta clássica de madeira quase negra, entalhada a mão e a cerra bem, como que prendendo atrás de si um mundo que o queria engolir, ou mesmo trancafiando uma fera louca, vai saber...

Já em seu apartamento amplo e claro, com decoração clean, deixa seus pesados sapatos negros num canto onde está o mesmo aparador que descansa sua valise, suas chaves, e celular (com o qual ninguém se comunicava).
Ligou o stereo e a bossa nova encheu o ambiente. Trocou de roupa ao som de ‘Desafinado’ enquanto punha água no pequeno regador para hidratar suas orquídeas raras, dignas de exposição no Jardim Botânico.

Ao final de sua apaixonada tarefa religiosa, dirige-se ao fogão onde prepara suculento cannelloni com massa caseira e molho aos quatro queijos durante uma lenta e deliciosa degustação de um perfumado bordô!
Abre a janela e o som do violão de João Gilberto amalgama-se aos ruídos das brumas e de solitário passarinho que encerra essa sinfonia empoleirado num flamboyant em frente da entrada de ar.

Quem sabe ele é tão avesso a tudo apenas por saudade de sua solidão perfeita?
Ou ainda é a maneira que achou para esconder sua faceta gentil e sensível da selva de pedra em que vive (e que, diga-se de passagem; não perdoa ninguém...)?
Ou a realidade crua é que ele simplesmente veste a pele dessa figura sisuda - quase má - aos desavisados, e é domado pelo prazer da companhia de ninguém e apenas suaviza-se quando mergulha em seu mundo irreal e utópico.
Ou será essa sua verdadeira face, sua realidade?
Perguntas quem sabe sem respostas...
Quem sabe já respondidas!

Wendel Bernardes.

 (Música mais que sugerida)


sábado, 19 de janeiro de 2013

Apenas um diálogo.




-Pois não... No que posso lhe ajudar?
-Na verdade não sei ao certo. Ando muito triste.
-As tristezas são coisas naturais na vida... Consegue apontar os motivos das suas?
-Poderia dizer que é a forma que lido com minha família...
Encontro-me cansado das mesmas coisas todos os dias; a apatia se abateu nos meus relacionamentos...
Ou ainda com meu trabalho. Passei anos formando-me, graduando-me, mas ganho talvez um terço do que um profissional do meu quilate deveria.
Meu carro estragou, meu grupo de bilhar se desfez... Briguei com um grande homem.
-Algo mais?
-Ah, já que perguntou, tem sim...
-O que seria?
-Perdi o ‘grande amor da minha vida’, tudo porque deixei a apatia se abater...
-O ‘grande amor’... Está falando...
-Ah não... Antes de casar... Era um belo relacionamento, mas escapou-me das minhas mãos como água.
-E então?
-Então? Diga você!? Você é o terapeuta!
-Primeiro quero que você entenda que não se elucida algo assim como que num passe de mágica. Quero que saiba...
-Sem rodeios, por favor!
-Pois bem. A apatia que você insiste em descrever é na verdade um amuleto que você criou!
-Amuleto... ?
-Eu poderia descrever de forma acadêmica, mas você quer que eu seja...
-Direto; claro... Prossiga!
-A vida meu caro, é fomentada pelos sentimentos que desejamos cultivar. Cultive alegria e você viverá feliz. Cultive o amor e você será amado... mas você desejou cultivar os pontos negativos. Desejou a apatia!
Deixou ‘o grande amor da sua vida’ passar; casou-se com a segunda opção, permite que em seu trabalho lhe ditem até o que ganhar, empurrando sua carreira para um amanhã que nunca chega!
Seu carro tem conserto. Existem novos jogadores de bilhar em cada esquina e quem sabe esse ‘grande homem’ a que você se referiu se cansou de ser apenas um esparro numa relação com quem só reclama...
-Como?...
-Meu caro, esse amuleto que você cultiva em seu coração não lhe deixa ser feliz, simplesmente porque você não quer ser feliz...! Sinto muito.

-É tudo?
-Na verdade não, mas depende de você...
-Obrigado pela sua opinião...
-Por nada, passe bem. Ah, mande um beijo pra Ângela e pras crianças, diga a elas que o vovô sente saudades.
E quanto ao erro com o 'homem importante na sua vida', bem... Eu te amo, filho!
-Ok papai... Até mais ver!

Wendel Bernardes.




quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Lançando a Seda Mortal...




Quando anoitecia ela sentia deslocar-se algo estranhamente familiar dentro de si. Não havia exatamente dor, ou pelo menos, não havia traço de dor física, mas esse incômodo persistente mostrava-lhe sua diferença entre os demais.
Começou a notar tudo isso há pouco tempo, na verdade, embora soubesse da possibilidade de haver algo incomum dentro de si, sempre negou, escondeu, obliterou essa curiosa sina lhe proposta sabe lá pelo que... Ou por quem...

Mas agora tudo parece fazer muito sentido e a agonia de esconder já não mais existia. Decidiu fazer notar tal fato quase como que ostentando esse mal. Não havia vaidade ou mesmo orgulho, porém necessidade. Seu corpo cansara de lutar contra cada investida atroz que lhe roubara a alegria de viver ao longo do tempo. Como está implícito; era infeliz.

Porém nessa decisão de quase encarnar o mal, agora menos contido e canalizado, aprendeu a domar não só a fúria louca crescente dentro deste corpo relativamente pequeno, frágil e muito delicado. Agora aprendera também a dissimular.
Óbvio, levaria tempo demais no embate com os entes comuns, tentando lhes explicar sua decisão pelo mal pungente.
Como mulher, maquiava não apenas o rosto de carmim, mas tingia a alma agora negra de tom pastel pra convencer, agradar, se proteger...

E a noite aprofundava e o mal lhe seduzia, lhe acariciava, até que por fim terminava numa quase explosão, transformando sutil figura numa máquina psicopata que fere tantas vidas quanto toca, quase que um Midas reverso, que ao invés do brilho dourado reverte ao simples toque o gelo da morte.

Escolhe cuidadosamente suas vítimas como quem desfila tranquilamente numa liquidação de ponta de estoque. Visualiza gente como quem compra carne. Experimenta, toca, sente e leva consigo. Se adorna da peça de gente.

Quem por ela passa, seduzido por seu traquejo e beleza, eloqüência e fluidez, poderia sequer imaginar que seria enfeitiçado por tão convincente figura.  Seus olhos castanhos vidram a vítima como serpente maligna ou ainda, lhe envolvem na seda macia, porém mortal de uma viúva negra.

Esse mal, acredita ela, é sua essência, faz parte agora de seu ser. Depois que assim se viu, decidiu espalhar seu veneno e quem sabe lograr êxito na conquista; seja de vítimas, seja de discípulos.
Você está imune?

Wendel Bernardes.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

A Dama da Flor...





Ela se sentia cercada desde pequena. Na verdade perdera há muito a referência de liberdade. Chega a imaginar que nunca fora livre afinal. Suas lembranças mais distantes remetem sempre aos muros; às cadeias que a cercavam.

Sua mãe, figura sempre presente em sua vida, cuidava em minúcias das coisas que ouvia, que lia, assistia e até mesmo, das coisas que falava. De um jeito ameaçadoramente doce lhe olhava e direcionava cada pensamento convergindo para o que ela deveria crer! Às vezes sentia-se enclausurada literalmente, como num mosteiro ás avessas.

O estranho numa mulher tão doce e gentil como a mamãe, era seu perfil quase patológico em garantir que suas lições eram aprendidas por osmose, à exaustão. Não freqüentou escola. Mamãe dizia que ‘o saber corrompia a boa alma ignorante’, mas não era só ela quem cuidava de seus ensinos. Alguns professores de modos tão particulares como os de sua mãe, faziam-lhe companhia durante o dia.

Homens de jeitos enigmáticos, de feições estranhas, cercados de suas literaturas; principalmente dum livro negro arcaico, de páginas tons de sépia e cheiro ocre.
Crescera em meio a tanto conhecimento que os jovens de sua idade jamais teriam acesso. Um de seus professores, talvez um tanto rebelde lhe apresentou às grandes obras dos clássicos romancistas.
Encontrou-se com Shakespeare, espantou-se com Verne e apaixonou-se com Dumas (o filho) na verdade por uma obra em especial “A Dama das Camélias”...
Algo tão contraditório ao seu ensino fundamentalista, verdadeiro ultraje à sabedoria pura que lhe fora concedida.
Mas prossegue sua contemplação da vida sob a ótica de seus mestres.

Espantada ficou quando descobriu por fim que esse ensinamento fazia parte não só da formação de moça qualquer, importante apenas para sua família. Mas fazia parte de uma árdua etapa que levaria uma jovem tímida e originalmente sem grandes sonhos, além dos muros delineados de sua gente.

Percebeu que seus mentores eram na verdade parte de um culto ao conhecimento do inconcebível, e que cada etapa de seus ensinamentos faziam-na mais preparada para assumir grandes responsabilidades e tamanho poder sequer imaginado por menina antes tão simplória. Isso mesmo... ‘antes!’

Agora seduzida pelo poder do conhecimento e pelo desejo de dominar, seus modos pouco lembravam a criança tímida do passado. Uma mulher forte e decidida ergue-se para conquistar macabros ideais.

Já não sente mais as correntes que lhe cercavam os pulsos ou paredes que lhe comprimiam o corpo. Ela agora é quem puxa as correntes, é quem se assenta sobre a muralha.
Insana e cega pelo poder e autoridade, caminha a passos largos para dominar seu propósito...
Uma dama sem dúvida, mas a flor que melhor a define hoje seria uma tulipa... Negra!

Wendel Bernardes

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

O Medo do Abismo




Havia um som contínuo em sua cabeça, mesmo que não soubesse explicar que som era esse. Ele estava lá, martelando, soando, doendo mesmo. Ele sempre teve a impressão de que sua vida não lhe pertencia de verdade. Embora essa ideia fosse idiota de se comentar com as pessoas ao seu redor, mesmo aos poucos amigos que lhe restaram.

Começou a se arrumar para trabalhar. Pegava cedo, bem cedo. Precisava estar antes dos fornecedores chegarem. Quando o pequeno caminhão parou de frente a uma lojinha com portas e janelas de madeira trabalhados a mão, os que se arriscavam a olhar jurariam que tratava-se de uma marcenaria, mas as flores começaram a bailar num ritmo frenético.
Rosas de todos os tons, orquídeas, crisântemos, violetas... Cores afinal!

Depois de tudo estar devidamente em seus lugares ele simplesmente assina a guia que fica em seu poder e libera o cara da entrega. Não dá sorriso algum, mal responde a saudação de bom dia do trabalhador que lhe ajuda na loja.
Seco, duro, com feições quase que doloridas, mantém a ordem da vida que lhe foi imposta. Não consegue lembrar como começara tudo.
Quem comprou aquela loja? Quando decidiu ser florista? Justo florista!  

Estranhamente possuía um bom manejo do estilete e retirava espinhos como ninguém. Era tarefa fácil, e aparentemente a que mais lhe agradava. Quem sabe trabalhar só sem participação de ninguém, quem sabe simplesmente não seria por ferir a flor, por mutilá-la. Mesmo assim aquela função estava longe de lhe proporcionar alegria.

Depois de oito horas de trabalho ele simplesmente fecha a loja em sua rotina cíclica, veste o costumeiro casaco acinzentado de couro gasto e carcomido, ajeita algo parecido a um gorro em sua cabeça e acendendo um cigarro, some quase como que fugindo.

A dor seria sua única companheira não fosse o zumbido infernal. Chegou a pensar em consultar um especialista, porém como não conseguia confiar em ninguém seria um desperdício de tempo. Outra possibilidade de não se consultar vem do fato dele não poder ajudar muito ao doutor. Imagine só a sucessão de perguntas sem respostas. Não por conta de sua personalidade magnética, não dessa vez... Mas sim por causa da ausência de qualquer fato passado, a não ser por flashes desritmados, como que filmados por cinegrafista inexperiente, de um passado remoto... creio que da infância, quem sabe?

Pouco se olha no espelho, mas quando o faz nota cicatrizes em sua fronte, parecem cortes em forma de cruz, ou em xis, como queiram. Mas acerca disso nada sabe. Mas desconfia.

O medo de ser um monstro lhe aterroriza mais do que qualquer outra coisa. Mas procura não pensar nessa questão durante tanto tempo. Lembra meio que vagamente da frase de certo alemão que disse que quando se olha por tempo demais para um abismo, o abismo olha para dentro do observador.
O medo de receber piscada do abismo é muito grande. Então, decidiu viver ao acaso.
Mas as respostas não ficam alheias as perguntas durante muito tempo.

Certo dia, no meio de uma tarde de inverno, com pouquíssimo movimento quase sem flores à venda, percebeu que alguém lhe olhava. Estranhamente possuía a destreza de um bom observador e a perspicácia de poucos. Saiu pelos fundos, aproveitou o trânsito fluente do sinal aberto e como um fantasma atravessou a rua dando a volta por uma velha banca de jornais. Atrás dela surpreendeu homem cerca de 10 anos mais jovem que ele, vestido com bom gosto, cabelos curtos e jeito estranho. Parecia procurar algo; ou quem sabe alguém.

- Posso lhe ajudar?
O estranho se vira como que pronto a revidar um golpe
- Como você chegou aqui? Vejo que não perdeu o manejo da profissão!
- Sou florista, amigo, deve estar me confundindo com alguém, ou quem sabe estranhando minha ocupação.
- Então é verdade...
- Verdade?
- Que você não se lembra mais de nada.

Aquele papo estranho e meio furado estava tirando-o do sério. Decidiu encurtar à sua maneira. Agarrou o cara pela lapela e disse:
- Se você está aqui por que quer me dizer algo, desembucha rapaz, ou então não me faça perder mais tempo.
- Não tenho nada pra lhe dizer, nem haveria mesmo uma coisa assim tão importante na vida de um simples homem de flores, não é?
A ironia era notória na voz do desconhecido. Decidiu tomar outra abordagem. Largou-o e disse:

- Pois bem, então, tenha um bom dia...
- Pra você também Rodrigues.
- Me chamou de Rodrigues, esse não é meu...
- Tem certeza, florista? Acredita em tudo o que lhe disseram, na vida que lhe impuseram?
- Você tem cinco minutos...
- Preciso de dois...
Ele ajeita sua roupa agora meio amarrotada enquanto completa:
- Você nunca se perguntou o que está fazendo aqui? Quem são as poucas pessoas que te cercam? Você é casado? Tem filhos? É normal um cara da sua idade nunca ter se relacionado?
Você amoleceu, Rodrigues. Aceitou sua nova programação, simplesmente permitiu lhe enfiarem esse lixo na sua cabeça.
Nunca se perguntou por que eles fizeram isso? Porque simplesmente não te apagaram?
- Eles quem?
- Você tem as respostas dentro de si cara, não sou eu quem ira te catequizar, ou te levar à luz da verdade. Encontre seu caminho sozinho, você sempre foi bom nisso. Se quiser repostas procure, ou viva no silêncio, mas a questão é: você consegue?

Estático só lembrou de se virar para ver onde o sujeito foi alguns instantes depois, tempo suficiente para não achá-lo mais.
Sinalizou para seu funcionário fechar a loja de onde estava mesmo, já que a vista ali era boa, o cara a usara bem.

Teria que sair dali. Queria pensar nessa porcaria que o sujeito engomadinho lhe vomitara. Seguiu a pé para um lugar ao mesmo tempo público e arborizado a ponto de não ser achado tão fácil: o Jardim Botânico!

Num ponto pra ele estratégico, onde conseguia ver quem passava e não ser visto por ninguém, tentou fazer a porcaria da cabeça funcionar. Quem era esse Rodrigues?  Não poderia ser ele!Por que esse cara simplesmente lhe seguiu? Desceu e procurou espelho d’água ali perto, olhou em busca de alguém conhecido, mas como sempre, quando se viu no reflexo apenas vislumbrou um estranho!

A chuva que começou agora desfigurou aquele rosto estranho na água, e nada mudou em sua memória. Não se abrigou. Apenas seguiu seu caminho num passo simples, deixando a chuva lavar seu corpo, como que se ela pudesse exorcizá-lo de quem ele é... Na verdade, de quem ele era!

Decidiu fugir de seu destino, ou quem sabe, de seu passado. Não tinha ninguém para avisar, deixou bilhete para o funcionário lhe dando plenos poderes sobre a loja e, como se diz no Rio; meteu o pé!
Tinha uma boa grana guardada que nem sequer mexia, pois não tinha com que gastar.

Decidiu ir pro interior mesmo, pareceu o melhor caminho, longe de grandes centros urbanos. O eixo Rio - Sampa não poderia mais ser útil. Quando no aeroporto apenas com pequena sacola de mão olhou em redor, não sentiu saudade alguma daquele lugar. Num sabia se era dali, ou se viera de outro estado, sabe lá de onde...

Direcionou-se ao seu avião certo que de agora em diante a vida poderia ser diferente. Preferia que a dor e o zumbido ainda lhe seguissem, melhor do que culpa, que o remorso.

Entregou o bilhete e o cartão de embarque à aeromoça e seguiu para seu destino.
Ainda não sabia quem era, mas decidiu fazer seu rumo segundo sua mente, seu pensamento. Jamais deixaria um fantasma qualquer lhe ditar regras. Não sabia se essa era a coisa certa a fazer, afinal não poderia se lembrar se era assim que agia em seus tempos passados, mas o passado já era, e o céu agora cinzento desse inverno se abrira numa nova oportunidade.

Mas ele não está enganado quanto a absolutamente nada da vida. Sabe que a qualquer momento a sorte pode mudar e se preparar para isso será sua maior meta. Nunca mais será surpreendido por ninguém, seu destino agora está em suas mãos.

Quem sabe por conta da positividade da cena, ele não nota homem branco, roupas finas e cabelo ajeitado que lhe olha enquanto segue seu destino. Se tudo será como antes? Depende do ponto de vista!


Wendel Bernardes.