domingo, 18 de março de 2012

As Lendas de Ekklésia – O Pescador.



Vida dura. Madrugar todos os dias, às vezes nem dormir! Passar tempos no rio, nos lagos, passar dias no mar e ainda correr os risco de não pescar absolutamente nada mais do que um homem pode comer num dia.
As lendas antigas falam de peixes em abundância, de redes fartas e se partindo, mas ele está nessa vida desde menininho e jamais viu essa abundância.

Dizem que nas terras frias, nos altos mares há essa abundância de pescado, mas contam também as lendas sobre os Leviatãs, monstros marinhos que devoram gente, que viram e destroem embarcações inteiras com seus tentáculos infernais.
Nos mares do leste há tempestades de gelo, frio que faz a alma gelar... Triste vida essa de pescador; morre-se de fome perto do lar, morre-se buscando alimento longe dele.

Mas esse era seu destino. Veio de uma longa e antiga linhagem de pescadores. Seu pai, seu avô, seus irmãos, tios e primos ganham a vida nas águas e com os peixes, como poderia fugir dessa vida, dessa sina agora vil e torturante?

Quando não está nas águas, esta pensando nos peixes. Grandes, suculentos... cardumes inteiros! Na praia costura sua rede já velha e partida não pelo excesso de pescados, mas talvez pelo desuso. Ali mesmo acende pequena fogueira, mais feita para se aquecer do frio noturno do que para assar peixe qualquer.

Faz dias que não visita sua família, a vergonha o impede de chegar com cestos vazios. O que diriam da casa de seu pai? Da fama de bom pescador, homem de fibra e raça...? Já pode ouvir o coro das mulheres da vizinhança rindo de sua parentela, de sua família e do que ele representa.
Afagou-se mesmo com fome na margem pedregosa e dura e foi vencido pelo sono e o cansaço.

Abriu os olhos e estava só. Era o oceano o seu cenário; escuro, profundo, ameaçador e mortal. Notou que estava em pequenina embarcação que mal cabia um ou dois homens e seus temores. Procurou nela velas, mas sabia que não encontraria. Do que adiantaria uma vela nessa desgraça sem vento? Havia ali pequeno e carcomido remo, desgastado pela maresia que mais se parecia com um sinal de mau agouro do que salvação, praticamente uma sentença de morte.

Não via estrelas, não havia luz, não sabia onde era a margem mais próxima. De súbito, formou-se vento mortal cortando lhe o rosto, levando pra trás seus ralos cabelos crescidos. As ondas formam-se em segundos e mesmo para um bom nadador, experiente como ele, a morte chegaria em poucos segundos depois do barquinho ir a pique, pois as ondas negras e violentas levariam seu corpo para o fundo do mar, em direção à morte certa.

Pra onde remar? Qual direção? O que fazer? Deus, que desastre é esse?
Foi quando num turbilhão de pensamentos, olhou e viu a silhueta do que parecia um homem. Figura fantasmagórica flutuando ou caminhando sobre as águas em sua direção.

Águas geladas, violentas e uma alucinação, combinação que o levou apenas à um pensamento: "Será que morri e isto aqui é o inferno?" Quem sabe essa seria mesmo a definição de inferno prum pescador?!

Seu coração  tomado pelo medo duplamente qualificado agora está gelado. Quando a figura lhe chega perto, percebe que não passa de um rapaz. Nem alto, nem baixo, meio magro e com semblante de sofrido, cabelos e barbas crescidos.

O que um homem faz aqui? Sem barco, sem remos ou velas... e pior, não está nadando, mas andando!
Então, Ele lhe chega perto o suficiente para lhe sorrir e balbuciar palavras de ordem aos ventos e às águas. Quem é Ele? O quê é Ele?

O barquinho mal cabia um, agora aloja dois.
- Onde está sua rede, pescador?
- Está... aqui? Como pode, se a deixei na praia, pensou.Porém, revendo os últimos acontecimentos, e em como foi parar alí, isso não tinha importância nenhuma agora.
- Lança tua rede, amigo... pesque pra mim!
O que Ele quer? Peixe? Não consigo nem pescar pros meus! Mesmo assim, tomado por força da curiosidade e um tantão de medo, lança a rede e vê o barquinho quase virar. A emoção de ver os peixes lhe faz agir como louco e sorrir como criança. Nunca vira tantos peixes.

Ouve gritos e percebe que é dia, e que não está no mar...tudo não passou de sonho. A tempestade, os peixes, o rapaz... tudo um sonho! Ufa!
Ele se levanta e vê que os gritos são da multidão que agora ocupa a praia. Porque todos estão aqui? Percebe que há alguém no meio deles... Quem sabe é um homem?
O que será? Um apedrejamento? Uma prisão de alguém importante? Não... percebeu que as vozes eram mais de curiosidade do que de protestos.

Apressa-se para ver, vence a multidão e quando por fim está frente a frente com o motivo do tumulto ele leva um susto; conhece aquele rosto! É Ele, o jovem do sonho!
Ele lhe estende as mãos carinhosamente enquanto lhe diz:
"Vinde pescador, vou lhe fazer pescar gente...!"

Wendel Bernardes.

sábado, 10 de março de 2012

Uma 'lenda' bem real.

Irrequieto seguia pela rua enquanto ruía as unhas. Olhava para os lados freneticamente como se estivesse sendo perseguido e de fato estava. Notadamente havia uma sombra que pairava sobre ele. Fazia tanto calor que vestia apenas um short, camiseta regata e sandálias. O termômetro de rua de Bangu marcava 42º, mas ele tremia como se fosse junho.

O calçadão estava lotado, ninguém estava disposto a ficar em casa mais que o necessário. Porém ele não estava ali para fazer compras ou outro compromisso fugaz.
Assustado, um pouco ofegante e falando sozinho, o rapaz posicionou-se próximo a faixa de pedestres entre a calçada e a ciclovia. O sinal tanto fechou como abriu pares de vezes e ele, ainda irrequieto continuava sua estranha sina parado anormalmente sob o sol causticante.

Buzinas, frenagens, funk, anunciantes de porta de loja e um vendedor de água mineral faziam um complicado fundo musical da ópera da vida daquele cara. Foi quando, como em meio a uma mudança de ato, seu semblante trocou. O ar meio transloucado e frenético deu lugar a um olhar firme, decidido... O sinal estava fechado e ele posicionou-se para, ao contrário das outras pessoas, aguardá-lo abrir! Contei alguns ônibus, caminhão de entregas de loja e um gigante carro de som imitando trio elétrico baiano. Era notadamente um suicida em plano de curso.

Travei exatamente no momento que percebi sua atitude. Os instantes foram os mais angustiantes que se pode imaginar. Minhas pernas pesaram toneladas e minha vontade fútil não mais as comandava. Agora era eu que agia como louco.

Então meus olhos foram estranhamente direcionados a outro lugar. Na direção oposta  vinha guiando sua bicicleta cidadão pardo, de meia idade, bermuda cargo, camisa pólo virada do avesso, boné atravessado e semblante sereno... Parecia trabalhar em alguma obra ou reforma ali por perto (coisa comum no centro de Bangu uns anos atrás). No exato momento da abertura do sinal largou abruptamente sua bicicleta à própria sorte, direcionou-se com veemência ao suicida segurando-lhe o braço vigorosamente.

Os olhos (esbugalhados do rapaz certamente iguais aos meus de tanto espanto) mostraram que nunca se viram. Começaram ali mesmo uma conversa de não mais que 20 ou 30 segundos, aproximei-me o máximo que pude (sim, minhas pernas agora trêmulas, resolveram obedecer-me), porém não ouvi palavra, nem precisava. Estava estampado na face do rapaz que se tratava de uma bela bronca, mas sem mudança de voz ou coisa que chamasse tanta atenção aos demais.

Caiu ali mesmo no meio fio com as mãos no rosto denotando choro e certa tristeza. O homem, sem extravagância alguma, montou sua bicicleta entes largada em lugar qualquer, tomou seu caminho (inverso ao que fizera para ali chegar) e foi-se serenamente, como se nunca ali estivera.

Aí sim pude ouvir a voz do rapaz, ainda embargada pela emoção, com as mãos no rosto mostrando vergonha, agradecendo a Deus por mais uma chance de vida. Eu tolo, imaginei que seu choro fosse de simples tristeza.

Enquanto umas moças e o vendedor de água mineral curiosos sobre os fatos o acudiam, notei o Amor que envolvia aquela cena. Uma segunda chance dado por Deus por meio dum arauto que, como um Felipe (evangelista) veio e se foi, apenas cumprindo seu papel.

Percebi o motivo de meus ‘pés de chumbo’ e o fato curioso de parar na rua alguns minutos para ver a cena (isso não é de meu costume). Alguém queria me mostrar que estava no controle de absolutamente tudo e que move céus e terras em beneficio dos seus por meio do Amor.

Continuei meu dia sabendo que sou observado (e cuidado) todo o tempo e que desde as minúcias da vida, até a iminência da morte estão em suas sabias mãos. Certamente mais vidas do que a do rapaz e a minha foram tocadas pelos Seus gestos!

Wendel Bernardes.

sábado, 3 de março de 2012

Na Loja de Brinquedos Encantados...


Numa linda loja de brinquedos encantada, havia um boneco amado por quase todos. Possuía muitos pontos de articulação, falava com apenas um toque muitas frases em pelo menos três línguas, que fazia o sucesso entre a maioria da molecada. Isso porque vou omitir todos aqueles apetrechos multiusos que vinham inclusos!

Foi um sucesso de lançamento, e pouco depois, para não ficar pra trás no mercado, foi relançado com vários upgrades. E como era boneco de ação, podia-se escolher entre suas muitas facetas. Agente secreto, Espião internacional, Guerrilheiro, Ninja cibernético e tantos outros modelos, todos devidamente equipados, para não deixar ninguém insatisfeito.

Mas num dia pra ele assim não tão belo, bateu tristeza no coração. Porque será que um brinquedo assim tão especial não poderia ser o mais vendido? Não poderia ser o mais amado? Porque ele não poderia simplesmente, ser uma unanimidade entre a gurizada?

Sua frustração o fez cair nas vendas. Estava lá nos displays com a cara mais deprê do mundo. Poderia vencer qualquer vilão se a arma secreta de combate ao crime fosse sua cara de melancolia.

As crianças que antes o amavam, agora passavam de largo onde era exposto. Estavam acostumadas a verem sua cara de mal, sempre suja de barro, ou com máscara contra gás letal, ou ainda usando camuflagem de guerra. Mas cara triste? Isso não!

Decidiu então, que por causa de seus muitos fãs, deveria buscar ajuda, pra ver se além de reconquistar os piás perdidos, ainda ganhava status de primeiro colocado nas vendas da loja encantada.

Decidiu que apenas alguém muito articulado, saberia resolver seus problemas. Foi se consultar então com o boneco de papagaio, na loja encantada não havia ninguém mais sabichão.

- Papagaio?
- Curupaco!
- Estou com problemas!
- Quais?
- Acho que me esqueceram, não me dão mais ideia e as crianças quando vêm à loja, mal me olham ou mesmo, me ignoram!
- Ora meu amigo, seu problema é mesmo triste, quem não sabe o que é isto é o novo boneco de palhaço!
- Quem?
- O novo boneco de palhaço que chegou essa semana, esgotou as vendas num piscar, parecia natal e dia das crianças junto.... verdadeira loucura!

Os olhos plásticos de nosso herói de brinquedo brilharam como cristal polido, uma idéia lhe passara na cabeça. Pra ser mais popular era só agregar as qualidades que o palhaço possuía!

Sem pestanejar pulou logo da prateleira do papagaio e correu para o setor de acessórios de brinquedos. Saiu de lá com a cara pintada, calça colorida e cabeleira verde. Correu para seu lugar ansioso para a abertura da loja encantada no dia seguinte.

 Quando a mesma se abriu, qual não foi sua surpresa, uma turba louca entrou pelo seu setor (que por coincidência ou não, dava para o corredor do boneco do palhaço, verdadeiro frenesi infantil) e quando se depararam com sua figura explodiram de gargalhadas. Munidos da ausência de modos pertinente a cada moleque puserem-se a rolar pelo chão, quase em cólicas, rindo aos tubos de tão ridícula figura!

- O que é isso?
- Sei lá, deve ser o novo agente palhaço combatente do crime!
- Ou é isso, ou ele foi pra alguma balada estranha ontem, bebeu e não se recompôs, emendou um pai revelando de onde o filho herdara tanta maldade.

O coração de plástico já nem batia mais. Pobre coitado do boneco de ação.
Nem ligou pra quem poderia vê-lo, saiu pela tangente e pôs-se a chorar no cantinho, perto dos brinquedos didáticos de madeira, setor quase esquecido.

Em meio a sua tristeza, lembrou-se que não só os meninos o desprezavam, mas as meninas nunca lhe deram a menor bola! Ainda com sua idéia fixa de agradar, passou de novo no setor de bugigangas brinquedológicas e descolou vestido de chita, coração remendado, e cabelo de crochê!

Pronto, estava agora lindo, nenhuma criança, menino ou menina, poderia rejeitá-lo!
Mas ao abrir a loja no dia posterior qual não foi a troça.
Na verdade, prefiro nem mesmo reportá-la. A vergonha me impede.

O boneco agora era o próprio conceito de tristeza. Não sabia mais o que fazer e não entendia o porquê de não ser amado já que havia cumprido todos os requisitos para a popularidade.

Juntou seus trapinhos minúsculos de brinquedo e foi pro lado mais escuro da loja encantada, prevendo em sua cabecinha de vento que nunca seria amado dessa forma, ou, de nenhuma outra.

Moral da história:
Quem somos nós?
Somos para o que nascemos, ou nos tornamos um amontoado de peças e retalhos alheios?

Wendel Bernardes.