segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Eles Estão Entre Nós – Terror na Noite.


Passava da meia noite e a lua reinava soberana no inverno rigoroso do Sul.
A floresta densa e soturna mantinha um silêncio que angustiava qualquer espectador. Os sons, foram suprimidos pelo medo dando lugar a luz prateada e singela da dama da noite.

Ela está só. Na verdade está como sempre esteve, e isso nunca lhe fora um dilema. Aprendera a ser só e não necessariamente estar só. Mas essa noite estranha em particular lhe roubara o sono. Isso sim é algo incomum, a insônia nunca lhe fora companheira. Costumava dizer que dormia o pesado sono dos justos. Daí surgiu sua preocupação; não poderia dissociar a falta de sono a algo ruim.

Decidiu travar verdadeira guerra contra o incômodo e para tal, usou cada arma ao seu dispor. Leite morno, cobertor quente, velas aromáticas... Não usaria calmante senão algo natural, mas os maracujás estão ainda no pé, verdolengos, como se diz no interior. Cada atitude lhe afastava mais do sono, até mesmo a entediante programação noturna da TV.
Decidiu então desligar tudo e aguardar, afinal não tinha obrigação alguma pra manhã seguinte, afinal quem tem compromissos urgentes numa manhã de sábado no interior?
Tomou um livro e iniciou boa viagem até que começou a ouvir ruídos cada vez mais presentes e cíclicos. Tudo isso, misturado à insônia faria qualquer um simplesmente pirar!
Era uma casa muito perto da mata, herança de seu avô camponês e ruídos não eram assim tão incomuns, mas sim nessa noite, sim nesse silêncio ensurdecedor!

Trancafiada por conta do frio, ela tanta usar fendas na janela para olhar a noite. Fascinante e assustadora noite fria! Sorri quando se pega pensando nos ‘causos’ de terror contados à beira da fogueira comendo pinhão no quintal.  ‘Tudo coisa de criança’ – pensa.

Porém sombra sinistra, com estranho formato lhe chama a atenção. Pouco está oculto essa noite, que sombra seria essa insistente em agourar essa madrugada ‘perfeita’?
Os ruídos agora mais audíveis, como que mais presentes inundam a sala. Parece ruído no assoalho velho de madeira. Ratos? Quem sabe?
Os barulhos roubaram sua atenção e quando se vira em busca da sombra furtiva, se espanta quando nota que ela não está mais lá.
Coisas da mente, certamente.
Só que agora nota uivos... Tenebrosos, sinistros e macabros, lhe conseguiram assustar mais. Ela não tem cão, por ali não há lobos, ou animais similares...
A paz que ainda lhe restava, fruto de sua leitura, lhe abandonara de vez e no lugar nasce medo que lhe preenche a alma!
‘Calma’ – ela diz a si mesma. Mas calma por quê? Não há motivos pra se manter tranqüila quando percebe o que está acontecendo.

‘Isso só pode ser fruto de uma crise de pânico’ - pensa. Algo fomentado pela insônia, ambiente estranho, nada demais... Essas coisas não existem!
Ela se analisa e percebe que não apresenta os sintomas clássicos de ataque de pânico, além do coração que já está acelerando. Ela imagina que sua psiquê está lhe pregando uma peça. Embora muito racional, percebe o medo lhe possuir cada vez mais, as sombras lhe dão pavor e tudo ao redor vira seu inimigo.

Petrificada entre sua cama e a janela, não consegue nem ir até o interruptor. Nesse momento, possui  mais medo do que a luz lhe possa revelar do que a sombra lhe pode esconder.
O uivo está mais perto, mais alto. Não seria mais aterrador do que senti-lo assim tão junto.
Na cabeceira da cama antiga, onde descansa seu livro, toma velho crucifixo, presente de seu avô de formação protestante anglicana.
Não faz prece, não consegue elaborar qualquer sentença. A mente lhe desaba como avalanche, nada poderia se mais desesperador! Nada?
Certamente sua opinião muda quando ouve o som amedrontador de alguma vidraça quebrando. Ela nem sabe por que ainda não desmaiou de puro terror. Ela crê que seu corpo luta contra si mesma, pois a adrenalina que ele gera a faz estar ainda mais alerta no lugar de simplesmente apagar!

Nota tardiamente suas pernas rígidas e nada tem a ver com o frio de julho. É o terror puro. Agora ouve o som de passos pesados e neles o ruído de garras arranhando ainda mais o velho e surrado assoalho de madeira de lei. São apenas instantes. Pouquíssimos segundos a separam certamente da visão mais aterradora de sua vida. Essa cena macabra parece ser saboreada segundo a segundo, pois o tempo dalgo aparecer diante dela já se fez, e até agora nada.
A curiosidade lhe dá estranhas forças agora ainda mais fortes que o medo que a paralisa. Quando resolve deslocar-se, ele surge...

Envolto em uma sombra singular e densa, essa figura monstruosa se mostra como que orgulhoso do mal que representa.
Olhos ferozes iluminados como fogo, hálito úmido, dentes pontiagudos. Imagem de fera, postura de homem. Se ela pudesse gritar o faria, e tenha certeza que seria o mais alto e gutural urro que alguém jamais ousou expelir.
Ele se aproxima, e é nesse instante que nota as garras como largos espinhos apontados pro seu corpo. Ela está agora absolutamente dividida. Sua razão lhe diz: ‘fuja!’ Seu coração pede pra que o monstro seja rápido.

É nesse momento que nota que sua mente volta a elaborar sentenças. Então, como atitude única e desesperada, pressionando o crucifixo de seu avô a ponto de perfurar a própria pele, apenas diz em prece: ‘Salve-me!!!’ Fecha os olhos como que entregando seu espírito, sentindo o hálito da fera mais forte a cada segundo. Fétido, quente, anunciador da certeira dor que sentirá. Aperta ainda mais os olhos pra não contemplar a própria morte até que é atingida por uma onda sonora curiosa e insuportável.

O demônio grita! Na verdade solta um urro tão aterrador quanto sua própria presença. Ela sente suas patas ladearem seus ombros amedrontados, pois ele toca a parede atrás dela para se sustentar. Contrariando cada expectativa o monstro simplesmente cai. Na ação, ele ainda resvala seu corpo peludo com olor pútrido em sua tremulante figura; só aí ela consegue gritar!
Seu grito mais está para nojo e alívio porém o espanto que lhe assola quando abre os olhos é maior do que a figura demoníaca vencida sujando seu chão.

Enorme, negro, inacreditável, inexplicável! A imagem certamente teria lugar no imaginário popular quando se fala em lobisomens. Porém o que mais surpreende nessa questão toda é que esse ser infernal cruzou toda uma mata, gastou seu tempo assustando-a, invadiu sua casa para simplesmente morrer aqui aos seus pés? É quando nota estranha gosma alaranjada, emanando do corpo sem vida. Ele foi ferido e morto. Por quem???

Obviamente ainda assustada, percorre a casa antiga na esperança de encontrar seu salvador, mas apenas acha o vazio dos cômodos, os restos da vidraça quebrada e uma inexplicável paz! O alívio que sente só pode ser entendido, se levada em conta a fé que agora abunda seu coração.
Quando volta ao quarto, ainda vê a criatura se desfazer em cinzas, como se resvalada por místico toque flamejante, mas nada consegue enxergar senão o descrito. ‘E pra que?’ - pensa ela. O que importa agora é a salvação que experimentou. Olha pra seu velho crucifixo e tem ainda mais forte a certeza que embora viva só, nunca realmente esteve sozinha!

Não tão distante dali, um ser gentil lhe observa em paz, abrindo suas asas, embainhando sua espada e voltando para seu destino, certo que a batalha está longe de ter um fim.

Wendel Bernardes.

sábado, 16 de novembro de 2013

Eles Estão Entre Nós – O Poderoso Kenoah (2).





Algo entre o uivo e o lamento é ouvido na madrugada escura e fria. Até a Lua decidiu esconder-se talvez pelo medo, ou ainda quem sabe apenas para não testemunhar as loucuras atrozes que se farão na noite de hoje.
O som amedrontador e contínuo, além de fazer a alma gelar ecoa como um chamado, ou alerta.
As poucas luzes teimosas escondem-se atrás das cortinas. Cada um agradece segundo sua fé por estar em casa e de certa forma, pede alívio ou morte rápida para as pobres vidas que ainda perambulam desavisadas nessa cidade esquecida por todos.

Uma sombra densa e palpável segue demoníaca figura que com olhos arregalados e faro preciso buscando por vítimas das garras e dentes sedentos de sangue. Pouco depois de alguns instantes de busca, silencia seu chamado agourento. O faro acha algo; uma vítima em potencial de seu macabro propósito.

O jovem simples caminha pesadamente pelos becos escuros da cidade enquanto pede – quase em prece – que alguma condução que o leve para a segurança de seu lar, apareça como que um milagre e o salve de seu cansaço das mais de 13hs fora de casa.
Ainda se pergunta se conseguirá agüentar esse ritmo frenético e louco. Precisa de cada centavo do salário prometido pelo rico empregador, mas sabe que nunca realizará seus sonhos futuros de formar-se em medicina se essa carga horária não relaxar.

Um ronco de motor interrompe suas elucubrações... um coletivo!!
Ele reúne suas últimas forças, ignorando a dor presente o dia inteiro em seus pés e decide correr para não perder, quem sabe, a última chance de chegar em casa ainda escuro.
Infelizmente suas forças e gritos são insuficientes para chegar, ou mesmo sensibilizar o conduto do ônibus que abandona Rubem sozinho à própria sorte.
Ele mal sabe que o risco que corre é ainda maior do que simplesmente passar a noite na rua ao relento e no frio de julho.

Numa esquina, coisa de um tiro de pedra dali, seu algoz lhe sorri envolto em sombras toscas e profundas, certamente não geradas apenas pela noite. Ele se delicia com o momento e perde instantes preciosos arrazoando sobre a forma furtiva que levaria seu ataque. Não é apenas a sede de sangue que move tal criatura, mas a vaidade do crime perfeito, desde a forma mais exata de fulminar sua vítima, passando por uma perfeita entrada triunfal, teatralizando a triste cena até dar cabo da pobre e desavisada vida.

Longe dali, uma mãe preocupada, porém possuidora de uma fé madura olha no relógio e decide, ao invés de usar seu telefone, dobrar seus joelhos no que julga ser a mais correta forma de zelar pelo seu filho. Em prece breve, mas sincera, pede ao seu Deus proteção para o ‘menino’ que ainda se mantém a essa hora na rua. Naquele exato instante algo acontece no mundo sobrenatural quando forças lendárias são movidas a agir com furor obedecendo à prece sincera e focada da caminhante.
Ele se ergue, cinge seu corpanzil de seu aço milenar e num olhar perscrutador salta desde o infinito abrindo suas morenas asas para mais uma missão mortal. Um justificado não pode aguardar sequer um segundo. O tempo é crucial.

O jovem, absorto pela sua frustração é vencido pelo sono e cansaço e ali mesmo, agachado na rua adormece profundamente enquanto por detrás, algo incomensurável cresce e prepara-se para tragá-lo.
Valendo-se da velocidade da queda vertiginosa, Kenoah usa suas asas cor de âmbar num desenho aerodinâmico perfeito e as abre enquanto gira no ar visando cair exatamente em cima da sombra infernal.
Apenas olhos dum guerreiro místico poderia mesmo saber, dentre tamanha e profunda treva, onde cravar sua espada, agora flamejante de fogo espiritual. Usando de força, precisão e destreza, ele finca seu aço no demônio por cima, ainda em queda, terminando a possibilidade do mal, ele atravessa o algoz negro em questão de milissegundos. Nem urro, nem blasfêmia podem ser proferidos simplesmente por não haver tempo para tal.
As sombras obliterantes somem instantaneamente enquanto o corpo podre de Hugart apenas vira pó.

Kenoah vitorioso mais uma vez, ainda contempla Rubem dormindo, absorvido pelo cansaço na calçada. Os primeiros raios de sol surgem no horizonte e ele, por cima dos ombros percebe a aproximação de novo coletivo na direção de ambos. Antes de sumir, ele toca seu protegido da vez, despertando-lhe a tempo de ainda voltar pra casa.

O jovem sente o toque, se vira e embora não se sinta só, nada consegue ver. Pega sua mochila, limpa desorganizadamente seu rosto, levanta-se e faz sinal para o coletivo. Kenoah ainda o observa, como que querendo garantir seu trabalho até o fim. Abre semi-sorriso que denota um serviço extremante bem feito, e ainda se dá o direito de possuir além do sentimento de dever cumprido, alegria de saber que o futuro de Rubem, será ainda maior que ele aguarda. Certamente os planos dos céus não poderiam se frustrar hoje... Não se dependessem dele.

Abre mais uma vez as asas incomuns, e alça vôo para o desconhecido.
Sua nova missão ele simplesmente desconhece, mas certamente estará preparado para agir, seja ela qual for.    

Wendel Bernardes.

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Eles Estão Entre Nós – Oliel, o Arauto (O Anjo e o Teólogo).





Ele vira noites em claro sobre livros e mais livros. A sua incansável busca data de muito tempo, desde sua tenra idade.
John, filho de um casal curioso, parece querer elucidar as dúvidas que pairam nos corações dos fiéis ao longo dos séculos. Aparentemente tenta provar a existência do invisível, comprovar a veracidade do improvável. As horas voam e ele permanece.

Seu pai foi pastor protestante. Homem zeloso pela religião e seu cumprimento. Um dia apaixonou-se por bela moça simples, inteligente, recatada.... católica.
As barreiras quem sabe impostas pelas certezas filosóficas foram quebradas pelo amor.
John é fruto desse amor, dessa união.
Sua infância foi uma mistura de catecismo e escola dominical. De missa e culto. De crisma e Graça.
Onde muitos veriam uma guerra de opiniões, seus pais viam a harmonia de idéias. Pois nada poderia ser mais complicado pra ele do que conviver com essa duplicidade de filosofias, esse paradoxo de realidades.

Cresceu sendo regado por águas que, por mais fluidas que fossem, não lhe matavam a sede, nem lhe levavam embora suas dúvidas pelo ralo. Decidiu que, como cavaleiro errante, viveria sua cruzada pessoal, buscando a verdade por trás de cada doutrina, a essência escondida em cada possibilidade.
Fez teologia, filosofia.... Buscou na amplitude de pensamento e na diversidade de verdades sua base pra descobrir quem está certo. Qual deus poderia salvar, qual doutrina deveria seguir. Por conta disso gastou cada instante importante da própria vida

Até que certo dia, quem sabe minado de forças ou abalado na busca, quis deixar de lado sua procura por acreditar simplesmente que não havia resposta para suas perguntas. As revelações estavam cada vez mais distantes e ele, cada vez mais fraco, era tarde demais. Seu pobre corpo abalado pela busca espiritual, não agüentou o tempo de estudo. Fora internado, sem lá grandes chances de sobrevivência num renomado hospital de sua cidade.
Ali, certo de que Deus lhe abandonara, usava seus últimos instantes de consciência (ou de vida) para absolutamente nada. Não cria em preces. Não queria perder seu tempo em orações ou rezas, afinal, para qual deus iria encomendar sua alma imortal?
Adormece com essa dúvida em seu coração.

-Como está você?
-Ah... me desculpe doutor, acho que dormi.
-Não tem problema; como você está?
-Não sei se tenho resposta pra sua pergunta, doutor. Nem as minhas mesmo consegui responder...
-Desculpe, mas do que estamos falando mesmo?
-De nada doutor, são apenas elucubrações de um moribundo.
-Que falam de...
-Ah, você não irá querer saber de fato.
-Você não tem nada a perder, e eu, sou todo ouvidos.

Ele se ajeitou em seu leito enquanto fita aquele cidadão desconhecido com rosto pleno e curioso. Não sabe se deveria portar-se como pregador de vasto sermão, ou se age como professor tentando defender sua tese filosófica. Decide então ser ele mesmo, e discorre ao desconhecido suas dúvidas... todas as incertezas de uma vida.

-É simples, passei a vida inteira tentando entender Deus segundo as duas maiores religiões cristãs do planeta, hoje estou mais próximo de crer, que na verdade, esse Ser simplesmente não existe.
O desconhecido usando jeans claro e surrado, camisa clara, tênis meio sujos e sobretudo branco, ajeita seus curtos cabelos grisalhos de um modo jovial, senta-se à beira do leito como que querendo lhe entender melhor e apenas diz:
-Prossiga...
-Bom, você é um homem da ciência e como tal, provavelmente buscou a melhor informação visando atender mais pormenorizadamente seus pacientes, não é mesmo? O estranho apenas lhe fita sem dar sequer resposta enquanto meio desconsertado prossegue.
-Bem... eu fiz exatamente o mesmo, só que busquei na religião essa resposta queria mostrar a todos onde está a verdade.
-‘A verdade’?
-Sim, exatamente...
-Primeiramente acho que você deveria cair em si...
-Como assim...?
-Sua busca nunca foi por conta da humanidade, nunca visou trazer respostas senão pras perguntas que você mesmo tinha.
-De certa forma...
-Seus pais eram gente de fé, de convicções. Não estou lhe dizendo que eram certos ou errados, apenas que seguiam o caminho que acreditavam... Alias, que tiveram a coragem de acreditar!
Ele emudeceu e sentiu certo calafrio – como ele poderia saber de seus pais?
-Você estava exatamente do outro lado dessas convicções. Não... você não tinha dúvidas, que são até sadias...você simplesmente se negava a possuir fé!
-Fé?
-Sim! Você dizia buscar um Ser imortal que segundo relatos criou todas as coisas. Um Ser que morreu para trazer vida a muitos. Apenas para que outros pudessem ser plenos não é isso?
-Acho que sim...
-Pois então, você buscou de forma errada.
Ele afundou-se em meio aos travesseiros com a sentença do ‘doutor’.
-Ora meu caro, não me venha com bobagens. Sou formado em teologia em duas vertentes, também filósofo e mestre em história. Tenho inúmeros ensaios escritos e vários originais de livros em escritoras apenas aguardando a minha palavra para suas publicações.
-Um ‘sim’ que nunca virá!
-Então você veio me dizer que estou mesmo morrendo?
-Quero dizer que você jamais permitiria a publicações de sequer uma obra sem ter certeza das ‘verdades’ que você escreveu, simplesmente porque lhe falta fé!
-Minha teologia confirma meus pontos de vista, meu caro...
-Preste atenção, amigo...
Ele se levanta, ajeita sua roupa e num tom sério, porem suave prossegue.
-A teologia é uma ciência humana, e como tal tenta de um modo 100% humano elucidar em Ser 100% espiritual. Tudo que vocês têm são relatos, estudos, anotações...
-Todos comprovados...
-Por quem?
-...
-Suas filosofias teológicas são colchas de retalhos, na maioria das vezes muito mal costuradas.
-Como assim?
-Vocês possuem cacos de relatos de gente que ao longo da vida passou por algumas experiências com Deus. Só que vocês levam essa experiência como um fim, mas na verdade elas são apenas um meio!
-Como um caminho?
-Sim, exatamente... uma direção, como placas ao longo de uma rodovia. Cada relato baseado no que viveu cada homem ou mulher é pregado como se fosse o final, mas é apenas o início. Você nunca poderia entender isso, pois lhe faltou fé. A fé que sobrava em seus pais...
Você nunca teve suas próprias experiências, nunca teve sequer uma conclusão que fosse realmente sua.

Ele se cala. Talvez nunca ouvisse tamanha verdade. Em apenas alguns instantes de conversa, ele viu o mundo passar diante de si. Décadas de pesquisas em confronto com minutos de bate papo.
Nesse exato instante, as escamas caem de seus olhos enquanto pergunta:
-Quem é você? Não é médico aqui de verdade, é?
-Não sou medico!
-O que faz aqui?
-Não lhe está claro?
Nesse instante o homem aparentando no máximo uns quarenta anos, se afasta do seu parceiro de conversa, deixando-o lhe ver como realmente é. O espanto toma conta desse teólogo até então sem fé...
-Um... anjo?
-Me chamo Oliel, sou um arauto. Vivo entre os homens e às vezes lhes ajudo a enxergar o óbvio. Mas em breve você esquecerá essa informação.
-Não, por favor... Essa visão apenas fomentará minha fé em Deus...
-Você está errado meu amigo. Isso apenas lhe fará buscar mais respostas vãs. A fé que brota agora de seu interior já lhe foi mostrada. O arauto lhe toca com a mão espalmada no peito e lhe diz:
-Você se levantará em breve para caminhar mais, viverá de sua fé e não de uma filosofia ou religião. Busque a Deus, e não o que os homens dizem Dele.

Ele sente o sono chegando, mas ainda consegue vê-lo sair de seu quarto de hotel pela janela.
Adormece sem saber o que virá, mas desta vez sabe no que crer, pois a fé veio pelo que viu e ouviu. Aquilo foi apenas seu e de mais ninguém.

As batalhas desses seres são cada vez mais intensas, mas nem sempre a espada mística se faz necessária. Oliel sabe muito bem disso. Onde a batalha se dará na próxima vez?

Wendel Bernardes

domingo, 10 de novembro de 2013

Eles Estão Entre Nós – Hylel, o Astuto.






Ele dobrou a esquina tranqüilo sem mesmo olhar pra frente, já que conhecia o caminho como a palma da mão. Estava um pouco mais pesado hoje. As frustrações da vida lhe pressionavam tanto que vez ou outra imaginava que seria um personagem criado por Homero, não... por Dante
Mecanicamente entra em seu prédio certamente pedindo que quaisquer dores fiquem no saguão, no elevador, no corredor, na porta... Qualquer lugar é melhor que sentada no seu sofá, justamente ao seu lado.

Antes de dormir, uma cena curiosa lhe invade a mente. Estava pelo menos quartenta anos mais jovem e, ajoelhado tendo ao seu lado sua irmã que reza o Pai Nosso (que é a única prece que de cor conhecia) e ao final, beijavam-se na bochecha ou testa, e cada um dirigia-se pras suas camas.
Certamente não era saudade da irmã, que vê diariamente na empresa familiar que tocam como podem, então o que seria? Saudades de rezar?
Ele sorri de si mesmo e se vira pra dormir, sem esquecer-se de seus dois comprimidos habituais sem os quais a noite seria uma tortura.

Alguém lhe observa atento, com curiosidade e alguma dúvida. A pequena fenda na janela do sétimo andar é como tela para olhos tão treinados e perspicazes. As informações sobre seu novo ‘protegido’ são muito importantes.

Cabelos curtos, roupas simples, casuais, expressão de homem comum... Seu nome é Hylel e não se engane, esse guerreiro de asas claras embora exale paz e sossego é um inimigo feroz quando instigado.

Hylel enxerga mesmo muito bem, apenas não consegue vislumbrar onde sua missão se encaixa na vida desse mortal desleixado de meia idade, porém a vastíssima experiência lhe faz acreditar que aguardar e confiar é a melhor coisa a fazer.
Embora acostumado às campanas, seria praticamente surpreendido se não fossem seus dons apurados.
Ele sente algo surgir bem próximo, no teto do prédio ao lado do que usa de base e está claro que vem em sua direção.

-Hylel, meu caro... quanto tempo?! A última vez foi onde mesmo? Veneza, Londres? Como foi que nos trouxeram do Velho Mundo e nos jogaram nesse lixo de trópicos, hein amigo? Devemos ter feito algo de errado, ter incomodado alguém...
O sarcástico ser que se aproxima lentamente ajeitando par de luvas e cartola é Asdaad, velho conhecido de Hylel, mas nunca foi exatamente seu...
-Amigo??? Se eu fosse você, demônio, tomaria mais cuidado com suas palavras!
-Ora meu caro, ao longo dos séculos, estarmos vivos depois das Cruzadas, Guerras Mundiais e da Reforma é mesmo algo incomum, não?
-Sempre estivemos de lados opostos, cão!
-Ah, vocês e esse linguajar belicoso. Demônio, cão, blá, blá, blá... Não se cansam de empunhar espada protegendo mortais caminhantes?
Vocês são tão certinhos, sempre com suas ordens e suas obrigações... tedioso!
Vamos, anjo da guarda, relaxe um pouco e lembre-se que nem sempre fomos inimigos!
-Primeiramente nunca mais me chame assim...
-De anjo da guarda?
Hylel ameaça sacar da espada que agora deixa à mostra.
-Sim sim, entendi... Prometo nunca mais...
-Vocês são mentirosos, como não poderiam desmentir nossa existência nos estigmatizaram nessas figuras constrangedoras de ‘anjinhos particulares’...
Gordinhos, nus e como figuras infantis. Sabem muito bem o que somos!
-Ei, acalme-se, já não está mais aqui quem falou. Vai querer me catequizar agora? Faça-me um favor, padreco... Ele solta uma longa e debochada gargalhada.
-Se não for direto ao assunto esqueço que já servimos lado a lado e lhe parto em dois, verme!
-Calma Hylel... Eu vou ser mais prático, eu juro.
O ser infernal caminha até a laje em que Hylel se encontra e diz:
-Quero saber seus planos aqui...
Agora é Hylel quem ri...
Não ofenda minha inteligência, criatura.
-Estou querendo saber, pois notei sua campana nessa laje pequena defronte desse prédio e até onde eu sei os caminhantes estão nos andares inferiores e seus olhos estão entre o sétimo e o oitavo, não? Algum assunto pessoal? Sim, pois isso não seria exatamente uma novidade entre vocês, lembra-se do caso de...
-Já lhe exigi respeito, Asdaad!
-Hummmmm... quando você diz meu nome assim até acredito que irá descumprir suas ordens e ferir um principado como eu... Não se esqueça da hierarquia, hein?
-Ninguém sentiria sua falta, cão! Suma daqui e não me tente!
-Não antes de ter minha resposta...
-E entregar o ouro ao bandido?
-Ora, ora... usando ditados humanos? Você sempre gostou dessas criaturinhas não é, anjo? Posso ao menos chamá-lo de anjo, não? Pois sim...
Curioso notar a influência nítida deles em seu modo de ser. Escute... Vamos acabar logo com isso. Você me conta e minha curiosidade se vai... Simples assim.

Cansado do teatro cômico e irônico de Asdaad, Hylel usa uma arma tão poderosa quanto sua espada... A sua astúcia!
-Muito bem, se você acertar quem é meu protegido eu lhe conto minhas ordens...
-Hummmm adorei.... Mas e se eu errar?
-Seja criativo, demônio.
-Ah sim, melhor nem perguntar... Deixe-me ver... Deve ser um caminhante frustrado, acertei?
-Não!
-Então, um filho de caminhante, certo? Desses que os pais vivem orando a vida inteira...
-Não!
-Ora... Ou você está usando a saborosa mentira ou seu Mestre está ampliando a cobertura do plano empresarial – gargalha mais uma vez...
O guerreiro pleno de si, apenas diz:
-Nem um, nem outro...
-Me diga, anjo. Pare com seus joguinhos tolos!
-Muito bem, você quem pediu: vigio o sexto andar e ele é um ateu depressivo que um dia será um grande caminhante... devo lhe ajudar em seu caminho em busca da Luz.
Ao terminar a frase Hylel se aproxima de seu curioso adversário e diz:
-Satisfeito?
-Na verdade estou desapontad....
Um urro nasce mo lugar do final da frase de Asdaad. Sem crer, ele se vê agora atravessado por lâmina dourada de não mais de vinte centímetros. Trata-se de uma adaga angelical, a arma mais furtiva usada pelos guerreiros místicos.
A energia de um pequeno sol percorre o corpo magro do principado demoníaco, fazendo-lhe contorcer-se e simplesmente queimar até a morte.
Hylel limpa sua arma e diz:
-Não possuía mesmo ordens para matá-lo, mas agora que descobriu meus planos, tudo muda de figura. Não poderia deixá-lo viver.
E ainda ganhei mais um prêmio, odiaria ver a sua cara esnobe na minha frente. Estou livre de você, sujo!

Ele dá as costas às cinzas de Asdaad e volta mais uma vez sua atenção à sua missão.
Esse é Hylel. Já deu pra notar que ele leva suas missões a serio, não?

Wendel Bernardes.




domingo, 16 de junho de 2013

Inimigo...

Ele está cansado de esperar, afinal de contas é um homem de ação, um guerreiro! Seu coração anseia tanto por respostas quanto em sair do marasmo.

“Aguarde” - ele ouve de seu mestre – “seu coração ainda não está pronto para o que virá...”
Embora ele encontre sabedoria nas palavras do ancião, tudo lhe está confuso, nublado. Seu sangue praticamente ferve nas veias. Ele se levanta pronto para sair e no instante seguinte, se senta mais uma vez.
Não há medo em seus gestos, apenas a inquietação peculiar dos jovens.

Seu mestre sabe que tudo pode ser posto em risco. Que seu ímpeto pode arruinar não só a vida de seu amado discípulo, mas de todos que os cercam. Porém nesse momento confiar é a única coisa que lhe resta. Apenas acompanha a errante atitude de seu pupilo até que...

-Mestre, eu não agüento, devo seguir meu destino!
-Seu destino está em suas mãos, porém deve se lembrar que sobre seus ombros está não apenas o seu desejo, mas o destino dos seus. Um passo errado e tudo que você ama, desaparecerá!
-Mas não consigo esperar mestre, devo prosseguir.
-Nem sempre ouvir nosso coração é o bastante jovem guerreiro, lembre-se, ele é enganoso!

O discípulo falava de enfrentar seu destino, pondo em prova seu treinamento, adiantando muitas etapas. Estava à sombra de sinistra gruta que lhe atraía como o mar chama as águas do continente.
-Vou entrar, mestre!
-Deve entrar apenas se estiver pronto.
-Como vou saber se estou pronto? Alias como o senhor sabe se estou ou não pronto?
-Eu não sei, na verdade nunca sei... quem deve saber é você!
-Então, minha decisão está definitivamente tomada!

Ele se ergue derradeiramente, cinge seu corpo com sua armadura, apanha cada utensílio na certeza do uso de cada arma. Veste-se preparado para luta, mas a sombra de seu destino final ainda o aflige. Até que toma sua grande espada - a espada de um príncipe – e a embainha sabendo que dela fará uso brevemente, que dela, dependerá sua vida.
Seu mestre, triste em notar sua hesitação e saber que o que lhe motiva está mais nos fatores externos do que em seu desejo de cumprir seu papel, apenas lhe observa com olhar atento, fraterno...
-O que há lá dentro, mestre?
-Não há nada... apenas encontrará lá o que levar daqui!

O jovem aposta em seu destino e embrenha-se numa mata mortal, onde cada planta possui um propósito, cada animal lhe desafia, cada sombra lhe ameaça...
Caminha até que lhe surge, imponente e soturna a gruta macabra que lhe rouba a paz.
Assim que adentra desembainha seu aço nobre, talvez crendo que seu brilho constante lhe guiará na direção certa.

Ouve ruídos assustadores. Chamados, assovios, risos... Sente que cada centímetro ali quer roubar sua vida, fazer-lo perder o foco, envergonhar seu propósito. Mas agora crê que deve concluir sua intifada. Precisa provar a todos que não é mais um menino, que agora é um valente, precisa então agir como tal!
Diante dele surge figura encouraçada. Um monstruoso e gigantesco guerreiro trajando negro, empunhando sua espada afiada e mortal. Ameaçadoramente cruel, terrivelmente cabal!
Obviamente assustado o guerreiro se lembra das palavras de seu mestre e crê que lhe pregara uma mentira, afinal este demônio não é nada?
Salta sobre o mal como que querendo esmagar sua origem. Desfere-lhe golpes adestrados, ágeis, potentes. Embora pequeno em relação ao seu oponente acredita que a luta pode, e será vencida pela sua fé.
Golpe após golpe, vai costurando a possibilidade de sua vitória, mas não consegue deixar de ouvir os rosnados do inimigo, sua respiração metálica; quase pode sentir seu ódio materializado...
Então, tomado de um gesto inacreditavelmente veloz corta a cabeça do inimigo negro fazendo-o cair!

Cansado, porém vingado, o jovem vai em direção ao seu troféu e quer como principal espólio de guerra dessa luta ver a face de seu algoz.
Sem se importar com o sangue abundante tornando ainda mais sinistra aquela cena, ele se ajoelha diante da cabeça do guerreiro vencido e lhe abre o elmo.
Assustado cai de sua própria altura, como que vencido pelo demoníaco guerreiro, mesmo depois de sua morte.

Embevecido pelo caos que lhe atrapalha as idéias, nota tardiamente que o que seu velho mestre lhe disse era real afinal. Dentro do elmo do monstro, havia jaz e desfigurada sua própria face como um maldito espelho lembrando-lhe quem é realmente seu maior inimigo!

Wendel Bernardes.

[livremente adaptado da cena do filme O Império Contra-Ataca (Star Wars: Episode V - The Empire Strikes Back), de 1980]

quinta-feira, 13 de junho de 2013

Caminhos...





Quando abriu os pequenos olhos tristes percebeu que não estava em nenhum lugar familiar. Era, na verdade, uma bucólica paisagem dessas que povoam as mentes coletivas a respeito do paraíso. Havia sim um clima de paz, ou quem sabe, na verdade, ausência de guerra. A cena era envolta numa fina névoa, bela, bailante que trazia um ar misterioso a tudo.

Óbvio que estava preocupado. Perguntava-se se isso era real e tangível, ou se estava materializando um sonho. Decide levantar-se e sondar o lugar. Sentia medo, pois vivia algo desconhecido, mas era desbravador por natureza, não poderia simplesmente deixar o acaso tomar conta de si. Percebeu que usava roupas leves, como se o motivo de estar ali fosse justamente esse; caminhar...

Espelhos d’água, pomares, árvores ornamentais. Ruídos de pássaros e sons de outros animais indicam a vida abundante nesse lugar. Porém nenhum dos outros sentidos citados lhe rouba mais a atenção que seu olfato. Os cheiros são arrebatadores; flores, frutas, terra molhada. Todos os odores estranhamente reconfortantes, característicos de uma parte específica de sua vida: a infância.

Não sabe se se cansou de desbravar o jardim, ou se fora mesmo vencido pelo excesso de informações contidas desse paraíso, o fato é que, debaixo de uma arvore ancestral faz seu descanso, deixando seus olhos ainda desconfiados cerrarem em pausa para arrazoar a respeito do que lhe trouxera ali. Não saberia precisar o tempo passou, tampouco poderia dizer quanto levou para perceber novos ruídos ao seu redor; sons de movimentos na grama alta.
Explodiu-se o medo, misturado a uma ponta de esperança, e despertando do descanso, ao procurar pela origem dos sons nota, não muito perto, mas nem tão longe, uma figura feminina envolta em paz.
Mas não era qualquer figura, mas alguém muito, muito familiar.

Possui um sorriso iluminador, cabelos presos sem esforço e uma bondade exalada nos olhos que lhe fitam.  ‘Como pode ser ela? Que saudades...’
Ela lhe chega e o perfume que sentira a vida inteira lhe atinge como chuva de verão. Porém não lhe diz palavra. Apenas se assenta ao seu lado e lhe puxa pelo braço trêmulo para confortá-lo em seu colo macio, e confiável.

Ele possui a sensação que o mundo realmente poderia acabar ali e nada faria em seu pensar mais sentido do que findar seus dias nesse Éden de sentimentos, matando sua saudade dessa mulher ímpar.
Quando finalmente adormece profundamente sente seus medos mais cruéis e suas dúvidas mais profundas, serem curadas pela comunhão desse encontro.
Terapiando o que nunca abrira para ninguém – por não fazer sentido fazê-lo senão para esse ser – sentia-se entendido em cada palavra que não disse, em cada atitude que revelou apenas em estar com ela.

Não saberia mais uma vez precisar o tempo que isso levou, mas acorda cônscio que não foram apenas instantes dadas as circunstâncias. A leveza do corpo, a força da mente, a coragem para prosseguir. Olha em volta e a bela paisagem – agora sem a névoa – esconde o lugar que seu anjo particular foi. Mas sente paz a ponto de não se entristecer mais como foi com sua primeira partida. Sabia que de alguma forma, era tudo necessário para sua cura. Ensaia um tímido sorriso deixando seus olhos menos tristes.

Até que percebe agitação numa colina, coisa de uns quinhentos metros dali, então decide ir ao encontro das pessoas nessa subida, e no seu caminho ouve voz muito familiar ao seu lado:
-Está pronto?
Ele se assusta tanto pela proximidade, quanto em notar que conhece não somente a voz desse personagem de sua vida.
-O que você faz aqui?
-Bom, eu estou ‘aqui’ todo esse tempo, nunca saí de perto e foi você quem quis assim...
-Como assim?
Ele sorri confiante enquanto prossegue sua explicação.
-Eu vim para lhe ajudar com algumas respostas e uso essa forma tão familiar a você, pois sei que confia nele e é mais fácil fazer isso por você, como já disse, no seu interior foi você quem quis assim!

O homem lhe indica o caminho e começam ambos a passear mais lentamente enquanto aquele ser, notadamente mais elevado, lhe tranqüiliza ao passo que dúvidas austeras e perguntas recorrentes são respondidas.
-Mas porque tudo tem sempre que parecer tão difícil? – pergunta o confuso protagonista:
-Nada é tão confuso para quem enxerga a vida com o olhar do Amor. Se ele rege sua vida, embora tristezas sejam inevitáveis e as dores até freqüentes, nota-se que tudo é resultado das escolhas que se faz durante a caminhada, abençoadas por esse sentimento.
-Você está dizendo que sofremos porque escolhemos a dor?
-Estou dizendo que, se o Amor é a meta, nem a dor pode fazê-lo desistir de seus sonhos de nunca estar só.

Apenas quando ele ouve essas últimas palavras se dá conta que estava trilhando um caminho errado na vida. Fugia de tudo com medo da dor, mas notou que ela o seguiria sempre no desvio que escolheu tomar, ou qualquer fosse seu destino.
Percebera também que não estava morto, e que aquele paraíso nunca fora o céus, mas que fizera uma estranha, curiosa e indecifrável viagem em si mesmo e que o saldo foi muito positivo.
O colo da mãe, as palavras do coração... Tudo lhe refez em força para seguir adiante em seu caminho em direção a ele mesmo!

Wendel Bernardes.



sexta-feira, 7 de junho de 2013

Eles Estão Entre Nós... Liel.




A guerra é vivida num nível cada vez mais intenso. Baixas de ambos os lados, enfraquece a batalha. Cada guerreiro cônscio de seu dever fará de tudo pela causa.

Nova Iorque – Dezembro de 2024.

O clima é cada vez mais louco. Deveria ser inverno na América do Norte, mas o calor se intensifica. Em menos de dez anos, especialistas dizem que se terá aqui um ‘natal tropical’.
O mundo mudou muito nessa última década. Embora os governos mundiais detenham ainda certo poder, perderam completamente a soberania e o domínio ficou por conta de uma mega-instituição religiosa chamada “O Culto” que nada mais é do que um conglomerado de várias segmentações religiosas unidas em franquias sob uma mesma bandeira; o poder
Há ainda alguma resistência no oriente. O mundo árabe e os hindus lutam bravamente, mas a cada dia as alianças monetárias e os boicotes financeiros enfraquecem até mesmo aos extremistas mais radicais. A ONU perdeu sua força até ser apenas uma lembrança insignificante num mundo globalizado ao extremo.

Fala-se uma mesma linguagem no meio corporativo e cada pessoa é agora, literalmente, cidadã do planeta e o centro nevrálgico de tudo só poderia ser mesmo a Velha Maçã. Nova Iorque abriga o centro político, cultural e religioso do mundo e não desacelera nem mesmo para que haja veneração da figura central do Culto; O Ungido!
Mistura de homem e mito, esse carismático homem de aproximadamente 45 anos é praticamente unanimidade na Terra! Os homens o invejam, as mulheres o desejam, as lentes são por ele enfeitiçadas, os autores de auto-ajuda o definem como padrão de sucesso e a filosofia contemporânea o encara como o novo messias para um mundo pós-moderno.

Brooklin – 23/12/2024.

As casas de todas as classes sociais, inclusive as classes mais baixas, possuem toda a infra-estrutura que cada ser humano necessita – Karl Marx ficaria orgulhoso – a não ser, quem sabe, se não soubesse que todo esse beneficio veio justamente do que chamara de ‘ópio do povo’; a religião!

Em cada casa há agora uma bandeira da nova fé, e pelo menos uma foto de seu messias. E as pouquíssimas famílias que ainda não as tem, sofrem todo tipo de abuso humanitário.
Têm dificuldade de arrumar comida, passam calor e frio sem energia elétrica e o mais cruel... Falta emprego, serviço de saúde e escola para essa gente.
A resposta para isso? Bem... Os líderes afirmam que os convertidos devem comer o ‘melhor dessa Terra’ enquanto os ímpios já estão ‘destinados ao fogo do inferno’... Talvez essa metáfora defina bem a vida de Carey.

Ele é segregado na rua. Esqueceu-se da última vez que ouvira um ‘bom dia’ ou um ‘olá’. Um sorriso cordial então nem se fala. A ajuda secreta de alguns caridosos vizinhos vem na forma de serviços para ganhar pelo menos comida e alguns trocados de new dollar. Assim sobrevive.
Como é um homem de fé, não perde a esperança na humanidade. Com todos costuma ser gentil, e transparece uma pureza herdada sabe-se lá de onde...
Mas é claro que o perigo sempre está presente. Está numa semana má, não conseguiu trabalho nem ajuda da comunidade. Tudo ficará enlouquecedor em pouco tempo. Ele sabe que isso tem a ver com a incisiva política que os Centurions administram. Eles são uma espécie de policia global e executam suas ordens ao extremo. O cerco sobre ele está se fechando, logo o pior acontecerá!

É antevéspera de Natal, porém ninguém ousa comemorar uma festa ligada a uma das antigas religiões. Carey entra em casa e como sempre, faz suas preces ao seu Deus agora pagão, até que alguém lhe chama na porta.
-Quem é?
-Abra por favor, são os Centurions!
-Claro... Mas está tudo em ordem aqui, oficial.
Assim que abre a porta, cinco fardados sinistros adentram sua propriedade já agindo com truculência.
-“Em ordem”, infiel? Sua vida está fora do eixo!
-Me desculpe, senhor... Mas foi assim que decidi viver.
-Logo se vê que foi a decisão errada, meu caro. Você não passa de um farrapo humano! Mendiga trabalho e comida, e tudo isso por conta apenas de uma filosofia de vida...
-Devo discordar senhor... Tudo isso por conta de uma fé livre!
Todos gargalharam ruidosamente, menos obviamente Carey, que já imaginava o que haveria de vir após isso.
-Não viemos aqui para nos divertir com você infiel, queremos apenas lhe participar da novidade.
-Qual?
-Esta casa foi confiscada pela administração pública.
-Mas minha casa é particular, senhor. Até onde sei está quitada, pois se trata de uma herança... em qual acusação se enquadra sua...?
Antes de terminar sua linha de raciocínio o Centurion conclui:
-Eu poderia lhe enumerar muitas acusações contra você, dentre elas perturbação da ordem, falta de zelo com patrimônio tombado, dente outras...
Embora esse... ‘casabre’ esteja ‘regular’ como você ousadamente frisou, está assentado em terreno governamental, ou seja; pertence à Ordem!
Poupe-me o trabalho, infiel... ponha-se na rua!
-Não precisa prosseguir, seus convites serão descartados, senhor.
-Ora, porque meu caro? Quanta falta de consideração com quem ‘tolerou’ sua presença aqui até hoje.
-Consideração? Bom... já sei o que virá depois...
-Você tem algumas horas para sair e para lhe ‘ajudar’ vamos lhe poupar o trabalho com suas tralhas!
Dito isso, quatro dos Centurions começam a quebrar o que lhe sobrara de mobília. Carey está estático, não poderia mesmo ter outra reação, afinal qualquer ação contra a polícia desse novo mundo gerava sansões muito severas, até mesmo a morte em alguns casos.

Ao final de tudo, apenas as paredes estavam no lugar e a mobília do rapaz igual ao seu coração; em pedaços. Insatisfeitos os cinco lhe cercam portando armas elétricas e bastões de nocaute. Carey sabia a motivação real dos cinco. As horas que lhe prometeram para evacuação nunca seriam cumpridas.
Os golpes começam covardemente pelas pernas, querem vê-lo implorar de joelhos por sua vida.
Seguem-se sucessões de maus tratos que deixariam horrorizados os mais insensíveis dos homens.
Carey portava agora lesões diversas, edemas, hematomas, contusões e provavelmente algumas fraturas também.
Um deles agarra-o pelo pescoço, tirando-o do chão com força inumana. Espantado e dolorido, o jovem fita seu agressor e aguarda sua sentença de morte como cordeiro diante da matança. Qual não é sua surpresa quando nota o rosto de seu algoz transfigurar nalgo terrível e inimaginável pela mente simples do rapaz.
Pele esverdeada, olhos grandes e vermelhos, dentes semi-serrados. Seu espanto é ainda maior quando ouve a voz sinistra que lhe diz:
-Peça a morte, caminhante!
Ele luta para falar, afinal sua respiração está por um fio. Porém, embora seu corpo flagelado esteja mesmo fraco, sua vontade é férrea...
-Jamais – e concluiu;
Senhor, dá-me o destino que me julgares melhor, dito isso, desfaleceu sem ar.

Achando que o mataram, os demônios ignorantes mais uma vez gargalham continuamente, porém essa alegria parece passageira. Uma figura sisuda e corpulenta opõe-se entre os monstros e a saída.
-Um anjo? Quanto tempo não via um desses... Dizendo isso o chefe do bando puxa uma risada nervosa que não é seguida pelos demais. Todos sabem que um desses, embora raro, significaria problemas na certa.
-Veio levar o corpo do caminhante?
-Não seja tolo - disse outro – se está aqui, o mortal ainda vive.
O guerreiro alado abra sua boca e se manifesta:
-Pelo menos não são todos assim tão burros!
A fúria pelo insulto os faz tremer de gana por batalhar e armam-se prontos a luta.  O ser moreno de longos cabelos negros, usa em mãos lança mística, porém antes de singrar em direção a batalha lhes sorri dizendo:
-Não haverá quem sinta saudades de vocês, criaturas...

A luta desleal começa. Cinco grandes demônios contra apenas um anjo. Todos são exímios guerreiros e as cenas de violência têm por palco o casebre de subúrbio em meio aos entulhos dos móveis que os próprios demônios geraram.
Saltos, gritos de dor, sangue, feridas abertas e o primeiro demônio cai. Ele vibra seu bastão firmemente sobre seus ombros fazendo assim o segundo tombar, decepando-lhe a cabeça.
Os três covardes restantes ensaiam uma fuga, mas Liel lhes impede.
-É chagada a hora de vocês, vermes.
O líder deles lança um dos corpos dos comparsas mortos na luta em direção ao anjo visando ganhar tempo para a fuga. Liel desvencilha-se facilmente do engodo, saltando em direção a seu oponente agarrando-lhe pelo pescoço e lhe atravessa o abdômen com sua arma. Usando velocidade ímpar, estende suas asas atingindo outro fugitivo, ao derrubar-lhe, não perde tempo e lhe pisa a cabeça furiosamente.  Os atos de guerra desse anjo beiram a barbárie e não poderia ser diferente, já que seus inimigos lhe superavam em número e força.

O último, já quase em liberdade, chega a ver a luz da rua onde por instantes mantém a grata sensação da impunidade.
Nesse instante é agarrado pela farda e arrastado de volta pra dentro.
-Dê um recado ao seu meste-direto. Diga-lhe que as coisas estão mudando por aqui, e que seu até então bem sucedido levante de horror termina hoje!
-N-no-nós somos muitos - gagueja o demônio - sua guerra é inútil - revela o centurion.
-Quando foi que isso importou?
Terminado sua linha de raciocínio, o guerreiro místico devolve o demônio às ruas, onde certamente levará a noticia da derrota e o recado ao seu mestre. Obviamente seu destino será pior do que apenas morrer em suas mãos. Pensando assim, se vira e sorri ironicamente.

De volta ao interior da casa, junta os corpos podres banhados nesse sangue laranja e gosmento e só aí, saca sua espada que flameja assim que entra em contato com o ar.
Ele queima os corpos num fogo dourado e sobrenatural, que estranhamente apenas consome os corpos dos seres malignos, deixando intacta a casa já em desolação. Cada demônio é transformado em cinzas, logo depois bate forte duas vezes suas asas e as leva para longe, como se nunca estivessem no local.

Nesse momento Carey começa a acordar mas, surpreendentemente dá de cara com jovem de feições étnicas que lhe diz...
-Fique tranqüilo, eu vim ajudar.
-Quem...?
-Descanse, eles se foram, sou apenas um amigo.
Carey desmaia mais uma vez por conta dos ferimentos e da dor, mas agora está em bóias mãos.
O guerreiro, em sua forma de arauto, leva-o a uma reserva onde outros caminhantes na mesma situação de Carey são cuidados, se escondem e se curam.
Na reserva, discute-se os rumos do levante que planejam para trazer de volta a liberdade. Sabem que muito há de ser feito, mas o tempo de se esconder e correr está terminando
É tempo de guerra!!!!

Se você tivesse seus ouvidos adestrados, poderia agora mesmo ouvir o som dos tambores de guerra. Estão mais frenéticos do que nunca. Seu som é ouvido a quilômetros e seu reverberar agora faz a espinha de seus oponentes gelar de medo. Não há mais ordem para se esconder, a batalha se revelará... Em breve!

Wendel Bernardes.





sábado, 1 de junho de 2013

Eles Estão Entre Nós... Hyllel e Kallore.




Uma lança se ergue enquanto garras monstruosas incidem contra o adversário. Brados e urros mesclam-se ao som do aço rasgando a pele... Mas nem sempre é assim.

Moscou – 1973.

O frio toma as ruas numa nevasca furiosa e hostil. As almas sãs estão agora completamente agasalhadas sentindo o crepitar da chama alta na lareira. Mas Piotr segue seu rumo completamente solitário na missão que outorgou a si mesmo.
Saiu da casa quente e confortável num bairro bem situado para dar algum tipo de auxílio aos abandonados à margem da sociedade, num subúrbio qualquer onde filosofia e política perdem a voz.

Lá o frio é ainda mais cruel já que a pobreza impede a manutenção de um sistema decente de aquecimento – que é alias indispensável nessa parte do mundo. Famílias costumam até queimar seus móveis e objetos inflamáveis na esperança, ás vezes vã, de fazer a chama viva por mais um tempo.
Sempre com uma palavra amiga e um sorriso, Piotr leva sempre o que pode. Agasalhos, comida e vez ou outra até ajuda a obter lenha. Quando pode, leva ele mesmo em sua caminhonete, adquirida justamente visando a coletividade que o governo diz manter.
Porém, gestos apaixonados do piedoso homem de meia idade, embora bem vindo a cada pobre que ajudou, não é bem visto por alguns. E estes em particular, têm o poder de mudar essa realidade de uma forma inimaginável.

Piotr chega ao seu destino imbuído de fé, coragem e compaixão, mal sabendo o que lhe aguarda.
É uma noite estranha essa - pensa ele - já que não é assim tão tarde e as luzes estão apagadas. Nesse horário sempre há alguém disposto a receber auxílio, e uns poucos outros a ajudar na mão de obra, ainda mais ajudar a alguém que já é amigo dessa comunidade.
Ele bate nas portas, chama, assovia sem obter resposta.
Tenta então noutra casa, e noutra, e noutra, porém a mesma cena se repete. Só ecos de seus próprios ruídos são audíveis.

Até que figura sombria lhe aparece do nada, trajando sobretudo negro, chapéu de aba e estranho sorriso enigmático.
-Assustou-se, amigo?
-Desculpe, na verdade sim... Estava fazendo tanto barulho na esperança de ser ouvido que nem ouvi sua chegada na neve.
Nesse momento se vira e quando olha no redor do estranho, percebe que a neve em seu entorno está intacta. Sem pegada alguma ou rastro qualquer que indicasse de onde teria vindo estranha figura.
-Não se preocupe, estou acostumado com a reação de todos em relação a mim... Noite fria para um passeio, não?!
-Na verdade vim ajudar alguns amigos, o senhor também não é daqui, não é?
-Absolutamente meu amigo, sou daqui sim. Percorro essas paragens há tanto tempo que me acostumei a ver geração após geração declinar, uns sob a vida dura das ameaças da vida do homem simples, outros simplesmente perderem-se nas trevas... É um homem religioso, amigo?
-Não me considero assim exatamente, apenas sigo meus instintos e alguns bons costumes. Alguém disse certa vez, que a maior religião seria ajudar aos necessitados. De certa forma é o que faço, mas não é apenas uma obra de fé, mas sim, de compaixão!
Perdoa-me, acho que devo ir já que não posso ajudar ninguém hoje, vou fugir desse frio... Uma boa noite!
-Ah, mas poderia me ajudar então?
-Ajudar? Sim... No que posso lhe ser útil?
-Simplesmente me dando uma carona...
-Ah, claro, entre...

O sujeito com ar de desdém empurra os donativos não usados nessa noite e ajeita-se como pode na caminhonete.
-Mas pra onde o senhor vai mesmo, se posso lhe perguntar...?
-Em breve você saberá, apenas dirija meu caro.
A petulância do estranho lhe incomodava, mas aceitou tudo como parte do que lhe cabia para aquela noite. Tinha realmente um coração nobre esse Piotr!
Cerca de vinte minutos de estrada, com pouca neve que insistiu em precipitar, o sujeito lhe apontou casa grande, com ares aristocráticos, porém visivelmente atingida pelo tempo.
-Ali, por favor.
-Estranho... eu passo aqui faz algum tempo e nunca notei essa casa.
-Não há nada de estranho nisso, notamos apenas o que queremos ver nos cenários em que vivemos. Tudo obra da subjetividade.
Ele decide se calar diante dessa declaração. Manobra seu carro e diz:
-Pronto.
-Por que não entra e me faz companhia num chá, café ou algo mais forte?
-Sinto muito, mas...
-Creio que devo insistir, meu caro Piotr.
Ele se espanta que a figura lhe saiba o nome e por conta disso o segue até a velha mansão. Não sabia se fora apenas curiosidade ou algo mais lhe impulsionara, mas obedeceu a ordem quase como se precisasse disso
-Aqui é sempre mais quente.
-... Como sabe meu nome?
-Sei muito mais do que apenas seu nome, caminhante!
-De que me chamou?
-Aquiete-se. Sei de sua compaixão amenizando a dor desses desgraçados, de sua fé no homem, na sua esperança de um mundo melhor, essas bobagens todas... Você é sectário demais! É por conta disso que vim pessoalmente acabar com sua cumplicidade com o ‘bem’, humano!

Dito isso, o homem já estranho, agora se revela na frente de Piotr. A cena sui generis dura instantes e logo diante dele está, no lugar do fidalgo, criatura com mais de dois metros seguramente, pele acinzentada, cabelos ralos, olhos esbugalhados, garras acentuadas porém, mantém estranhamente o sorriso soturno e sínico de sempre.

-Meu Deus, o que é isso?
-Não tente fugir, caminhante. O que agora paralisa seu corpo inútil não é apenas o medo. Sinta meu poder agindo em você.
Piotr não consegue mesmo se mexer, e sente agora dor aguda no seu cérebro e ao mesmo tempo, algo faz que seu sangue ferva nas veias. A dor é tão desconhecida quanto indescritível.
-Meu Deus, me ajude...!!!
-Cale-se boçal... Seu destino está traçado e sua morte é certa... Levarei sua alma comigo para o inferno!
Nesse momento ouve-se terceira voz que se revela dizendo;
-Como você pode dar por certo algo que nem mesmo teve fim, demônio?
-Quem está aí? Revele-se, eu ordeno!!!

Das sombras de uma ante-sala surge ser iluminado, trajando vestes simples, rosto de homem comum, cabelos curtos, expressão firme, barba rala e um belo par de asas pálidas...
-Você não pode se intrometer aqui, Hyllel, ele é uma vítima limpa!
-Demônio, desde a queda sua visão do que é limpo ou sujo foi de fato comprometida. Largue o controle da mente do caminhante... Já!
Dizendo isso, o guerreiro alado ergue o braço em direção aos dois e uma guerra invisível tem inicio. O demônio, visivelmente fraquejado com a aparição angelical, começa a expressar ares de dor e de súbito, solta um grito aterrador enquanto é obrigado a largar o controle mental que matinha em Piotr.
Caída e humilhada a criatura volta a ter uma aparência humana...
-O que está fazendo aqui, guerreiro de luz? O tratado me dá plenos direitos de explorar essa gente.
-Um tratado firmado entre um ex-governante delirante diante de sua figura assombrosa? Ora, com quem você pensa que está lidando, Kallore? Não sou um dos seus para cair na sua lábia suja, e estou aqui atendendo a prece do caminhante.
O anjo dotado de uma autoridade ímpar prossegue em sua sentença.
-Você bem sabe que diferentemente de meus irmãos eu não preciso de lâmina espiritual para lhe destruir, demônio.
-Ora... É vaidade que noto em sua afirmação Hyllel?
-Eu não uso poder senão o que me fora dado, criatura profana. Não use seus engodos para ludibriar a mente de Piotr mais uma vez. Deixe já esse lugar!
-Essa casa, é minha!
-Nada aqui pertence a você, criatura insana... Suma!

O brado de Hyllel cria um vórtice quase imperceptível a olho nu, porém as emanações são sentidas facilmente em todo o ambiente e até Piotr, pasmo com toda a cena surreal, sente forte compressão no peito. Quando procura por seu agressor nada mais encontra.
Ele tenta erguer-se e conta com a ajuda de Hyllel para tal.
-Segure meu braço, caminhante.
-Porque me chamaram assim?
-Simples você está trilhando pelo Caminho, não é mesmo? Mas,  duvido que esta seja sua única pergunta, estou certo?
Apenas o olhar do homem responde a retórica do anjo.
-Bem, você agora está ciente que existe um mundo onde coisas sobrenaturais acontecem...
-Isso é incrível!
-Incrível é ter alguém que por pura compaixão, simplesmente abdica de seu conforto pondo sua própria vida em risco apara ajudar ao próximo. Por isso me ordenaram em seu auxílio. Você é o verdadeiro anjo salvador aqui.

Piotr observa as asas lindas e vastas do guerreiro de estatura mediana se dobrarem e sumirem em sua frente, tornando o anjo num homem de aparência costumeira, normal.
-Ainda há muito a fazer. Duas guerras distintas estão se formando, Piotr. Uma você já escolheu seu lado quando decidiu ajudar a esses pobres coitados, e por conta disso alguns serão postos a lhe ajudar..
-Será incrível, mas e a outra guerra?
O ser místico, agora agindo como homem qualquer estende o braço, descansando-o no ombro de Piotr e prossegue:
-A outra guerra, meu amigo, já dura uma eternidade, e nesses dias que virão terei muitos compromissos.
-Em quê?Se posso perguntar, claro...!?
-Proteger você e os que estarão por despertar pro trabalho das hostes que Kallore irá convocar!
-Não entendi porque não o derrotou, entende?
-Está me perguntando por que não o matei?
-Sim..
-Embora seja um guerreiro, apenas cumpro ordens e o demônio será peça fundamental para o plano que se desenrola. Mas tudo correrá bem, agora você sabe que sempre houve um Alguém em seu auxílio, não?
-Na verdade, nunca duvidei.
O anjo sorri confiante que agora ganhou um aliado a sua altura.

A manhã começa a despontar no horizonte gélido, Piotr agora mais cônscio de sua missão e das implicações que ela trará retorna para sua caminhonete e quando procura por Hyllel, vê ainda mais duas silhuetas ao longo da colina ao lado da mansão.

A batalha não pode parar enquanto houver justificados em perigo. Cada guerreiro sabe que as armas diversas são eficazes nessa peleja e que a prece tem um poder certeiro em seus efeitos.
Mas, onde será próxima etapa da batalha?

Wendel Bernardes.





segunda-feira, 27 de maio de 2013

Eles Estão Entre Nós... Arata/Lebiel



Não se ouve mais o som de trombetas de guerra, os tambores emudeceram. As bandeiras tremulantes estão a meio-mastro. A tristeza se faz lágrima até entre os eternos.

Rio de Janeiro – Século XX.

Samba, flores tropicais, praias maravilhosas e boa comida. Ele sempre acreditou que isso fosse mesmo pra ‘inglês ver’. Nunca teve tempo de ficar ‘de papo pro ar’ como se diz por aqui. Nasceu na classe operária e caía na luta tudo dia pra tentar ser alguém na vida.
Tudo andava bem na sua caminhada, afinal a batalha pra romper fazia parte de um todo. Era um cara sóbrio, e dificilmente ficava viajando nas idéias; pé no chão mesmo. Só sonhava quando o assunto era montar uma família. Aí sim, ele idealizava uma esposa amável e compreensiva. E com ela teria tantos filhos quantos pudessem bancar.
Carlos era mesmo gente boa, um cara ‘do bem’ como adoram dizer hoje em dia (como se alguém se declarasse ‘do mal’, pode?).

Sua mãe, uma senhora respeitadíssima na comunidade, era a responsável pela criação desse mulato de quase trinta. Mulher digna e honesta, apenas ‘errou’ quando escolhera o traste do pai do Carlinhos. Esse sumiu na poeira depois da notícia da gravidez. Porém criou o moleque com honra, respeito e um amor incomensurável. Nunca se esqueceu de lhe mostrar o caminho da fé, e de certa forma, sempre soube que seria um homem importante. E não é que era mesmo?

Carlos era funcionário de uma super construtora, que potencializava seus trabalhos com a grande iniciativa de crescimento imobiliário por conta dos programas habitacionais nacionais. Dizia que ‘subir na vida’ por enquanto, era levar o carrinho de tijolos até o vigésimo andar, ainda em término e sem elevador. Era um piadista!

No trabalho, mais ou menos uns três anos antes, conhecera Arata. Rapaz de origem oriental e estatura mediana, mas com cara de brazuca, queimado de sol de tanta labuta até lembrava um pouco nossos índios.
Era gente boa toda vida. Tinha por Arata certa simpatia até o dia em que tudo aconteceu.

Era final do mês e Carlos estava por demais preocupado. As contas não batiam e já sabia que teria de entrar no tal do cheque-especial pra poder fechar o período e bancar as dívidas, todas já no vermelho.
Talvez por conta dessa loucura toda não poderia notar a parede se descolar e vir a toda na sua direção desde o terceiro andar da obra. Estaríamos falando agora de sua morte se Arata não tivesse surgido como um raio pra lhe puxar com agilidade e força de um gigante.

Daí em diante a amizade nasceu fraterna, como verdadeiros irmãos separados na maternidade. Onde um estava, estava lá o outro. Em certos momentos pareciam pai e filho também, mesmo sem muita disparidade de idade aparente. Simplesmente eram um pro outro o que se precisava para o momento de ambos, e vida assim foi.

Hoje Carlos se lembra com carinho da conversa que tiveram tempos atrás na hora do almoço no trabalho.
-Aí, cara...
-Fala...
-Já se pegou pensando alguma vez se você nasceu com algum ‘destino maior’?
Arata fitou-o com olhar único.
-Todos os dias, meu velho. Mas me conta aí; o que se passa na sua cabeça?
-Sei lá cara, pode ser bobagem minha, mas creio que algo precisa mudar na minha vida, sabe? É como se do nada, eu começasse a pensar numa direção, como minha mãe sempre disse; como é mesmo?
-Um propósito!?
-Isso!
-Quem sabe o seu propósito seja encaminhar pessoas na vida, mano?!
-Como um orientador de escola, ou coisa assim?
-Na verdade, pensei nalgo parecido como um ‘irmão mais velho’ pra alguns, tipo isso.
-Mas em quê? Ajudar na profissão?
-Pode até ser, mas imaginei coisa mais abrangente.
Arata põe-se a falar como que preparado há séculos para aquele exato momento. Sem ser prolixo, explica seu precioso ponto de vista.

Sem saber, absorto na conversa, Carlos é observado por criatura que o contempla como que o estudando. Só que seu foco não é apenas em Carlos e suas dúvidas existenciais. Seu alvo principal é Arata!
Passaram tempo demais conversando e notaram o quanto estavam atrasados para voltar ao trampo. No final do trabalho andaram juntos até a plataforma do metrô. Carlos entra e Arata se vira na estação quase vazia. Era tarde, já que estavam numa obra acelerada, faziam serão. Já estava quase na hora de fechar o metrô.

O clima estranho demais faz Arata entender que aquilo se tratava de um ambiente possuído pelo mal. Olha mais ao fundo e percebe vir em sua direção um ser obviamente espiritual, do alto de mais de dois metros certamente, e ao se aproximar, nota que suas vestes parecem-se mais com roupas de bárbaro.

Arata se espanta com a ousadia do demônio em aparecer ‘revelado’ assim naquele ambiente, mas não se amedronta.
Numa voz macabra falando como numa tediosa melodia aguda, o ser pergunta:
-Preparado para seu destino, arauto?
-Meu destino nunca esteve em suas mãos, Ottar!
Ouve-se uma gargalhada animalesca e os pouquíssimos presentes, mesmo sem ver nada, fogem por puro medo do desconhecido.
Ottar ergue uma besta e dispara sua seta mortal, porém o alvo desta vez não é Arata, mas sim o painel de força que se encontra um pouco atrás do pequeno arauto.
-Agora estamos no meu ambiente, pequenino; as trevas!
-A escuridão nunca me assustou, potestade. Você sabe muito bem como me adapto aos ambientes.
-Por pouco tempo pequeno guerreiro, por pouco tempo!
Dito isto, o covarde gigante convoca seus asseclas. Demônios de várias classes aos pares. Contavam na verdade, dezenas deles.
O pequeno com feições orientais, com um brado, libera seu par de asas cinzentas.
-Ah, o arauto volta às suas feições de anjo, não é “Arata”?
-Me chame de Lebiel, infiel!

Nesse exato instante, cada fera mística cai sobre o guerreiro com ferocidade ímpar. Ele se protege como pode. Garras e dentes pontiagudos rasgam sua carne, seu sangue jorra de forma alucinada. Se tivesse em mãos seu aço místico a luta atingiria outro patamar, mas tudo isso faz parte do plano covarde de Ottar. Enfrentar alguém 'despreparado' aumenta as certezas da vitória.

Socos, chutes, giros velozes, golpes de asas.... Ele luta com bravura inigualável e cada demônio, antes confiante da vitoria, percebe a honra que há no pequeno guerreiro que luta de mãos limpas. Porém ele sabe que não resistirá por muito tempo sem uma arma, ainda que improvisada.
Um a um, ele derruba cada demônio com esforço hercúleo. O adestrado guerreiro faz uso da cada utensílio que aparece em sua frente. Todos, tornam-se armas letais! E assim ele pouco a pouco logra êxito, até restar apenas...
-Ottar... Agora somos apenas eu e você!
A potestade sai das sombras, enquanto desfila sua cara desfigurada com voz nasalizada e com tom doentio:
-Tem certeza, ser inferior? Suas forças estão minadas pela luta destemida que conduziu, ou será que suas forças se foram por conta da vida ‘fácil’ que possui como arauto, vivendo escondido entre os caminhantes? Admira-me não ter sido morto pelos demônios inferiores...
O guerreiro angelical se ergue mesmo com feridas lancinantes, e lhe fita com olhar irado, apenas digno dos mais bravos:
-Me explique demônio, como um ser eterno pode ficar enfraquecido em poucos anos como arauto, se lutou milhares de anos como guerreiro?
Não me desonre com seus artifícios mentais, porco!

Eles se encaram, se medem, se estudam, até que Ottar inicia sua tentativa de frustrar os sonhos do Ser maior.
A luta é animalesca. Ambos são guerreiros eficientes e farão de tudo para a defesa de suas respectivas missões. Eles arriscarão a própria existência se preciso for.

A batalha épica já dura horas num balé amedrontador e duro. Ambos, obviamente cansados, querem terminar logo com isso, porém Lebiel sabe que a paciência precisa ser exercitada contra um demônio tão descabido como Ottar.
O anjo conta que em algum momento ele confiará em sua força e estatura e fará algo errado.
Mas, inexplicavelmente o guerreiro alado sabe que de alguma forma, o sujo tem alguma razão. Ele se sente enferrujado, exausto.
E desarmado de seu aço místico, sabe que apenas um milagre o fará vencer esse gigante demoníaco.
Olha para o céu e balbucia por ajuda em prece. Mas antes que miríades despenquem do céu em seu auxilio, Ottar aproveita a distração e atravessa o pequeno anjo com uma cimitarra negra sobrenatural! Ele não grita, mas a dor que sente só poderia ser suplantada pela vergonha....

Ottar sabe que deve se recolher logo. Matar um anjo possui implicâncias seríssimas e conseqüências mortais. Mas antes, ouve a voz sibilante de Lebiel que diz com leve sorriso:
-Você perdeu demônio burro! Com minha morte, dezenas dos meus irmãos ainda mais poderosos que eu, virão em sua caça. Os planos do Eterno se cumprirão mesmo em minha morte!
O demônio se agacha, furta seu aço negro do moribundo guerreiro e parte da mesma forma que surge; covardemente!

Há um hino de dor no ar quando os anjos chegam a tardio reforço. Eles choram, lamentam e fazem promessas de vingança diante do corpo do irmão ainda quente. Até que um deles, Agniel, se voluntaria para estar no lugar de ‘Arata’ na vida de Carlos.
-A obra de meu irmão não será em vão! Viva os sonhos do Eterno!!!
Erguem suas armas e bradam ao anjo morto.

É domingo de manhã quando rapaz alto e magro bate a porta de Carlos.
-Bom dia...
-Sim?
-Vim te trazer noticia triste, amigo. É sobre Arata...
-Ele...?
-Sim, infelizmente nosso amigo partiu.
-Como aconteceu?
-Não é tão importante agora, Carlos, mas saiba que tinha grande apreço por você e que seu desejo certamente era ver cumprido em ti, seu destino, o propósito que vocês conversaram tanto.

Ele se vira, e com um semi-sorriso se despede, porém o rapaz mantém a sensação que o verá de novo.  Mas muitas perguntas movem seu pensar. E quanto a conversa com Arata, como ele poderia saber de tudo?
Parece que realmente existe entre céu e terra mais coisa do que imagina sua pequena filosofia.

Carlos fecha a porta, abre o coração e pergunta a Deus o que virá? A resposta em seu coração diz que apenas Ele realmente sabe. Embora essa perda aponte para uma derrota, a guerra haverá de continuar. Onde será da próxima vez?

Wendel Bernardes.