sábado, 27 de outubro de 2012

Caótica Ordem..



 (Foto de Pub fundado em 1546)

Tudo havia virado ‘meio que’ um caos generalizado. Mas dentro do possível ele estava tranquilo. Aprendeu que existem coisas na vida que não se pode mudar. Que fogem das alçadas, então simplesmente, com seu jeito ‘sui generis’ de ser, relaxou. Pelo menos tentou.

Sua vida era uma sucessão de momentos dramáticos como atos de uma obra ainda inacabada de Shakespeare. Desencontros, sangue, traições e amores tórridos, não necessariamente nessa ‘ordem’. Alias, falando nisso, ele tinha uma teoria a respeito de ‘ordem e caos’, baseada em sua própria existência, que diferia muito das opiniões dos demais.
Era tudo amalgamado em seu coração anestesiado pela vida. Por conta disso costumava dizer que a ‘ordem’ de sua vida era dominada pelo ‘caos’.

Por conta disso fugiu de tudo. De absolutamente tudo mesmo!
Fazia parte de uma minoria. Era herdeiro de uma grande soma em dinheiro, pois vinha de uma linhagem muito bem sucedida no comércio. Mais velho de quatro irmãos, largou seu próprio posto de ‘príncipe herdeiro’ nas mãos da família, juntou a grana que pôde e sumiu.
Mas claro que sumiu com estilo, né?

Ninguém o encontrava fazia anos. Decidiu fazer exatamente o mais óbvio (segundo sua mente caótica). Enquanto todos o procuravam nos lugares mais distantes e que cabiam ao seu nicho social, ele estava pertinho, praticamente ‘nos quintais de casa’; como ele sempre dizia. Mas isso apenas nos primeiros meses. Esperou a poeira baixar e sumiu de vez!

Construiu uma (boa) casa no meio do nada na área de Serra do Estado do Rio. Imagino as várias perguntas que o arquiteto fez a si mesmo.
A casa, embora muito bem localizada para poder captar o ar corrente e a luz do sol, era quase inacessível. Deram-se ao trabalho de construir pequena estrada para passar o material de construção e depois, simplesmente reflorestaram-na para encobrir os rastros de tudo. Os mais observadores que enxergavam sua casa na encosta de uma grande montanha ficavam horas imaginando por onde alguém poderia passar pra chegar lá. Excêntrico, astuto, caótico...

A casa não possuía eletricidade, usava apenas velas, lanternas a gás ou coisas do gênero. A água vinha de uma pequena cascata que nascia uns cem metros acima na mata. Sem internet, sem TV a cabo, sem ar condicionado...
Mas não pense que ele estava em completo ócio. Na verdade esse modo de vida quase medieval era dificílimo de se manter, principalmente quando se esta só.
Preparar um alimento era uma verdadeira cruzada. Inicialmente vivia quase que de caça, mas na escassez de tudo decidiu virar vegetariano, tudo por conveniência.

Uns anos depois cansou da vida de eremita e foi morar na Europa, mais precisamente num chalé no sul da França. Não se acostumou e buscou algo mais cosmopolitano. Imagine; logo ele!

Foi pro subúrbio de Londres e era uma zona em plena ebulição, mas até lá agia como fugitivo. Não se relacionava, nem ‘Bom dia, nem Olá’... Fazia tudo em horários alternativos. Dormia de dia, vivia de noite.

Numa cidade como Londres, mesmo em seus subúrbios, há uma estrutura invejável de comércio e tudo mais. Cada ‘lugarejo’ é um microcosmo de possibilidades, mesmo com aquele ar interiorano. Quando necessário ia às compras no meio da madrugada. Ah, ele não era mais vegetariano, diga-se de passagem.
Andando sozinho com um longo sobretudo negro, virou quase uma lenda urbana, o homem das sombras ou coisa assim. Curtia tudo isso!

Mas mesmo com suas fugas e adaptabilidade, esqueceu-se de que ‘o caos poderia propor nova ordem em sua vida. ’ Foi justamente onde menos se poderia imaginar que ele reencontrou um sentimento que jamais queria ter de novo: o amor!

Era uma noite fria e decidiu ir a uma pequena loja de conveniência a uns quinze minutos a pé de casa pra renovar seu estoque de comida. Seguiu pé,  praticamente estrelando um conto extraído de um romance europeu do século XIX, estava sozinho na rua, enquanto brisa vinda de lugar algum lhe cortava o rosto nu.

Foi um alivio quando entrou na loja, em todos os sentidos! No balcão moça de uns trinta e cinco anos aproximadamente, cabelos negros, olhos azuis profundos, rosto simples e completamente absorto em seus afazeres. Desviou o olhar, mas de quem? Ela nem sequer o vira. Simplesmente o ignorou.

Ficou abalado pela presença da moça e fez as compras mais loucas do mundo. Veneno pra rato, batata frita, molho pra carne, saponáceo, alguns chicles de menta, tintura pra tecido e escova de dentes... rosa, pois nem cor vira. Encheu seu cesto do que tinha pela frente, sua mente nem agia, estava entorpecido pela bela visão da moça simples.
Pagou as contas, voltou pra casa e na madrugada seguinte voltou a loja.

Coisa que ele fez noite após noite ao longo dos meses. É claro que agora ela o notou, mas nada além disso. Porém ele está cada dia mais entorpecido de paixão. Mas não ‘se lança’ e nem quer agir assim. Decide que é melhor dessa forma. Ele já sofrera demais e já decidiu jamais complicar-se de novo com uma relação como de costume.

Ele a olha nos olhos profundos em microssegundos, enquanto ela não o nota, respira seu perfume levemente adocicado, ouve toda a madrugada sua voz baixa quase entediada contando cada item das compras e no final ouve: “Obrigado, volte sempre!”
Como poderia deixar de atender a esse pedido?
Em seu mundo agora até o caos faz sentido!

Wendel Bernardes.

(Texto inédito)

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

O Familiar Senso do Desconhecido...



Era lugar amplo de altíssimas paredes.
Galpões com lajes espessas, salões com telhas galvanizadas, ou de amianto; algumas ainda inteiras.
Tubulações gigantescas expostas cortam paredes por centenas de metros.
Clima estranho, quase pós-guerra, meio ‘cinema catástrofe’.
Não... talvez apenas tenha resistindo a violento incêndio e saques contínuos.

Embora minhas divagações não ficassem por aí, tenho certeza apenas de uma coisa... Não faço sequer a mínima idéia de como cheguei aqui; e é claro, reverbera uma pergunta na minha cabeça: “O que estou fazendo aqui?”


Continuo caminhando com meus devaneios, ou dúvidas, mas a curiosidade me impede de ficar parado. Quase que por instinto vasculho pátios, antes-salas, mais e mais salões. Exploro com cuidado, pois tenho sensação de não estar completamente só. Não me parece aquela impressão de estar sendo seguido, mas sim de estar sendo observado.

O cheiro é forte demais, lembra amônia misturada a algum cheiro ocre... mas num certo salão o cheiro mais parece com o habitual odor das queimadas. Tudo se explica quando noto as manchas negras em formato de tiras nas paredes altas anteriormente tingidas de branco. O rastro destruidor do fogo!

Nalgum momento noto sons conhecidos, burburinhos, passos, ruídos de manejo de objetos e utensílios. Mais uma vez minha curiosidade me leva a seguir... porém desta vez sigo pra buscar os sons. Mas é pela primeira vez que o medo também me acompanha.

Se não sei onde estou, deveria também desconfiar de quem estaria lá? E porque estariam lá? Essa é minha neura, minha incerteza. Mas o mesmo pensamento cai quando penso; ‘Se não sou hostil, porque eles seriam?’
Nada faz sentido. Muito menos meus pensamentos, meus nexos!

Comecei a vê-los aos poucos. Eram rostos desconhecidos estranhamente familiares. Estávamos de longe, como que numa análise em dois atos. Eu curioso, eles me ignoravam. Vestiam-se de forma casual, uns como se estivessem em casa, outros como se fossem trabalhar. Nada muito sofisticado. Aí me pego pensando; ‘Porque estariam produzidos para estar aqui?’ então acho mais que normal as casualidades.

A visão que mais me chama a atenção até então é de uma senhora, com feições distintas e um pouco mais produzida que os outros, sentada numa cadeira plástica cercada por mais dois ou três, simplesmente trajados. Os outros olhavam dissimuladamente: ela, porém me fitava quase que nos olhos mesmo em sua distância.

Então vi salas maiores, e tinham uma espécie de escrita em seus umbrais. Adentrei e só vi as mesmas coisas que antes tinha visto. Destruição, entulho, sujeira e o cheiro ruim fechava tudo com chave de ouro. Fui à sala ao lado por curiosidade, e à outra também... Nesse momento penso: ‘Porque estou singrando sala a sala?’ Nada me parece saída, mas um elo a outra mesmice!

Foi quando percebi certo casal. Ele assentado numa longa mesa, de costas, como que numa refeição comunitária. Ela, acariciando seu ombro, de costas pra mim, de frente para as costas dele.
Estavam estranhamente felizes, como ninguém ali estava.
Notei que a felicidade deles me incomodou. Quase me feriu. Mais uma vez estranhei tudo, mas não duvidei de nada. Era tudo curiosamente real nessa complicada ficção!

Então, como que de súbito, enegreceu-se a cena, o cheiro mudou, senti frio.
Meus olhos cerrados se abriram e notei meu teto, meu edredom, meu quarto. Um sonho?
Era um sonho, mas ainda sentia os cheiros, até poderia ver as cenas ainda. Era como se eu fosse levado até esse lugar e depois trazido de volta.

As perguntas permanecem, só que com contornos diferentes. Agora não é mais ‘onde estou?’, mas sim ‘onde fui?!’ Aquele lugar desconhecido existira? Vou conhecê-lo? Já estive lá?
A sensação de dèjà vù continua durante o dia, como um sabor que não me deixa a boca. Curioso, estranho, e de certa forma, até saudoso.
Mas a sensação que mais me persegue agora é que sei de tudo, e só não estou fazendo as conexões certas.

Wendel Bernardes.


(Texto inédito)

sábado, 20 de outubro de 2012

A Esperança de Onde Menos se Espera...

Esta manhã ele acordou demasiadamente frustrado. Os últimos dias foram duros, na verdade foram insuportáveis. Não estava mais em casa, mas a sensação era a mesma. Só se deu conta de que não estava mais lá, pois o teto era diferente. Ele abriu os olhos e se viu perdido, sem referência. Quem sou eu?

Ontem mesmo, quando ainda estava com seu ‘amigo’ depois da briga, parecia vivenciar um pouco melhor a vida, mas acordar ali o fizera desconsiderar seus caminhos, pelo menos agora pensava assim. Mais nada era definitivo nessa sua vida indefinida por si só!

Talvez tudo tenha começado em sua infância, onde seu pai truculento lhe dava amor apenas em pancadas. Amor em pancadas? Claro, assim iria endireitar-se, já viu homem se formar sem porrada? Bom, foram essas porradas que agora o fazem lembrar-se de seu velho com tanta amargura.
Porque minha mãe nunca tomou coragem e me defendeu? Talvez porque ela mesma tivesse medo de que aquele ‘homem’ que o pai dizia não se formasse nem com porradas, nem com palavras de amor e afetuosidade.

Mas pensar nisso não o fazia mais feliz, na verdade o tirava do sério. A tristeza que antes sentia de sua família, agora se tornou uma mágoa tão profunda, tão densa e tangível que parecia que apenas a Mão de Alguém poderia arrancá-la de lá. De onde? Do peito!

Quando ele decidiu contar o que se passava em seu coração, na verdade não queria ‘libertar-se’, mas apenas contar com a compreensão de todos. Queria ajuda, abrigo, guarida.
Agora sente-se um verdadeiro idiota. Como poderia imaginar que teria atenção neste momento, durante os vinte e três anos que vivera nunca os teve, porque agora? Martirizava-se por ser quem é. Ou, por ser quem forjou-se.

Quando mais jovem, talvez uns dois ou três anos antes, buscou num amigo, opinião sobres seus sentimentos. Ele, o amigo, era um bom rapaz, religioso daquela seita protestante da esquina, conhecia-o desde a infância quando brincavam animadamente na frente da casa da família. Eram bons tempos, nada se passava pelo coração; sem perguntas, sem rumores, sem explicações...

Lembrou-se que, um dia disseram a ele que se abraçasse uma fé, e de preferência uma fé protestante que era a mais certa, poderia aplacar sua dor de ser quem a família temia que ele fosse. Então, conversando um dia com seu amigo, abrindo seu peito a ele, teve uma grande alegria quando o viu sorrir ao contar-lhe sua dor.
- Ah, é isso? Bom, isso não é algo tão ruim, apenas não deve ser contado a ninguém!
- Então quer dizer que devo viver assim, sem dizer quem sou? Sem fazer exposição do que se passa em mim?
Os olhos do amigo brilharam, enquanto suas mãos tocaram seu ombro agora tenso.
- Claro que sim, como você acha que eu vivo?
- Você ... você também?
- Sim, eu também! Disse com um sorriso ausente de satisfação, mas de vergonha.
Ele saiu dali, meio desorientado, meio assustado, afinal aquela piscadela que tomara no final da conversa, junto aquele abraço demasiadamente apertado não queria sair da sua cabeça. Foi assim que entendeu que uma religião legal, por mais certinha que fosse não fazia mais bem do que uma pedra no sapato.

Mas essas lembranças também não o ajudaram. Ele olha para o celular e percebe que não há ligações perdidas de ninguém, pensa se deve mesmo levantar-se ou se passa o resto desse fatídico sábado na cama chorando suas mágoas.

Até ontem estava em casa, será que fez errado em contar? Será que se voltar o papai me aceita? Afinal foi só uma comunicação desencontrada, ele nem tinha terminado de se explicar.
Enquanto mais aquela pergunta rondava sua cabeça, alguém bate à porta.
Como pode, só ‘moro’ aqui faz algumas horas, como me encontraram?
Quando ele saiu de casa, achou esse quarto de aluguel, não era lá grande coisa, mas estava limpo e era o que seu dinheiro do salário de ‘treinèe’ poderia pagar. Melhor do que a rua era sim, claro!

- Oi quem é? Disse sem abrir a porta.
- Sou eu, cara!
- Eu? Eu quem?
- Quer dizer que faz só umas horas que tu não me vê e já me esqueceu?
Ah, era seu ‘amigo’.
Entrou olhando para ele com uma cara de espanto. Esperou ganhar um abraço, mas nem uma olhada ganhou.

- Cara, que tá rolando? Não achou que iria ser diferente, achou?
- Claro que sim... num queria sair de casa!
- Eu também num queria que você saísse de lá, sei como é ligado com sua mãe...
- Era..
- Ok, ‘era’ ligado com sua mãe. Mas olha pelo lado bom...
- Qual lado bom, hein?
- Agora teremos mais... privacidade, entendeu?
Ele olhou seu ‘amigo’ com certo ódio, nunca quisera assim, na verdade, nunca quisera que fossem mais do que eram.
- Pode voltar depois? Num tô nada legal!
- Claro, te ligo mais tarde, afinal, vamos aproveitar a ‘night’ pra ver se você ‘se ativa’!
Ele estava falando da balada que frequentavam, mas ele num tava nem um pouquinho a fim de luzes piscantes, som de bate-estaca, ar condicionado insuficiente e bebida ruim.
Ele queria amor, conforto, carinho!
A balada estava sem graça, o ‘amigo’ passou de ser sem graça, aquele quartinho embora útil, estava pra lá do conceito básico de ser sem graça.

Era mesmo isso que queria?
- Que m&#d@ fui fazer, pensou.
Então, lavou o rosto pra num dar mole na rua, tinha chorado a noite inteira, sua cara num deveria estar boa pra se ver. Pôs uma roupa legal, que estava meio amassada na mochila de viagem que fez às pressas com seu pai ladrando em seu pescoço e foi pra qualquer lugar senão aquele!

Pegou um ônibus, bem vazio, era sábado e não tinha muita gente indo pro Centro do Rio, se deu conta que pegou o mesmo ônibus que sempre pegava para ir trabalhar...
- Que burro, putz!
Ficou lá olhando aquela cena que veria de novo na segunda feira, se a segunda chegasse e o encontrasse vivo pra tal.
Pois é, pensou em morte, já era...
Meu Deus, nunca sequer imaginei que iria pensar em fazer tal coisa, logo eu que amo a vida!
Foi quando passou por um outdoor que dizia: “Eu vos dou vida, e vida em abundância!” foi seu primeiro sorriso naquele dia terrível, mas foi de pura ironia, viu? Tanto que acordou o carinha do lado.
- Falou comigo?
- Não desculpe, só ri alto duma frase que li num outdoor.
- Qual aquele ali?
- É... esse mesmo. O rapaz do lado só pôde ler a mensagem, pois estavam parados num semáforo. Ele também sorriu.
- Ué, não sabia que era piada!
- Agora é, oras...! Riram juntos.

Assim começou uma conversa normal, sem nada além disso, então o cara do lado lhe disse;
- Sabe o que aquela frase quer dizer?
- Que se eu der o dízimo pra algum pastor a vida dele será abundante?
- Riu por demais enquanto dizia: - Claro que não!
- Quero dizer que um cara deu a vida para que você não precisasse morrer.
- Tá falando do Jesus dos crentes?
- Claro que não, falo do Filho de Deus!
- Qual diferença?
- O Filho de Deus, ama aos seres humanos mais do que amou Sua própria vida, pois morreu a pior morte só pra te ver assim sorrindo como agora! E sorrindo pra valer depois de agora.

- Mas você num sabe como eu chorei esta noite.
- Eu? Claro que num sei... num tava lá... riram de novo!
- Mas Ele com certeza viu! Aí, tu acredita que fui escalado pra trabalhar de última hora?
Ele pensou: O que isso tem a ver? Mas não disse palavra.
Então o cara do lado continuou;
- Eu acredito que fui chamado aqui de propósito!
- Como assim?
- Ué, você precisava entender que Jesus é a vida pra você, e se você decidir, Ele pode te fazer alguém feliz, de dentro pra fora!

- Cara, Jesus não pode me aceitar, eu sou...
- Chato? Já saquei, mas Ele é um cara paciente, viu?
Riram, depois ficou um silêncio no ar até que o cara do lado, antes de levantar-se falou assim;
- Se você quiser, pode repetir comigo umas palavras, que se você pôr seu coração nelas, serão as palavras que mudarão sua vida.

Ele imaginou que iria repetir alguma coisa como ‘abracadabra pé de cabra’, mas pagou pra ver...
- Então diga lá!
- Ok; Senhor Jesus, preciso ser aceito por ti e preciso que Teu amor me envolva.
Repetia baixinho, cheio de vergonha do mico de rezar no ônibus, claro!
Mas ao abrir os olhos, parecia estar mais leve, mais alegre. E de uma maneira que não há tradução nem no inglês pra essa palavra! Sacou?
- Bom, disse o cara do lado, já vou indo.
- É só isso?
- Isso meu velho, é só o começo, Ele tem muito pra fazer aí no teu coração, mas isso é um processo diário, é só deixar Ele te achar e te conduzir.

Ele achou estranho, mas aquelas palavras doidas faziam o maior sentido.
Agora se sentia melhor, pois não era o amor de um ‘amigo’ que lhe preenchia a vida, mas o amor de Cristo, que supera todas as adversidades.

Sabia que não seria fácil, mas nada poderia ser pior que aquela fatídica noite de ontem. Seguiu sua viagem sorrindo, já não estava mais só, quem o via de fora, podia visualizar um vulto de homem ao seu lado, era Jesus, seu mais novo amor, seu mais novo amigo. Verdadeiro amigo!

Wendel Bernardes.

(Postado originalmente no Blog Café Com Leite Crente em 04/04/2011)

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Norberto, o primo do Aroldo!




Foi numa família linda que Norberto nasceu. Era o terceiro de quatro filhos. A casa que vivia era boa, mas sem luxos. E a vida também era assim.
Papai e mamãe viveram uma linda história de amor. Foram separados pelas circunstâncias ao se conhecerem, mas havia tanto amor naquele primeiro olhar que ambos decidiram namorar mesmo a distância: por cartas.
Fora assim por anos a fio até novamente se reencontrarem. A vida e a história deles daria um belo filme, viu? Desses que o mocinho luta toda a trajetória para ficar com a mocinha no final.

Amaram cada filho de forma única.
O primeiro, Gualberto, lhes nasceu forte, bonitão e robusto; parecia o pai diziam todos!
A segunda, Alberta, era doce e linda como um raio de sol na primavera, era cópia da mãe, dizia vaidosamente a própria.
O terceiro, nosso herói Norberto, antes de nascer, passou por todo o tipo de dificuldades.
Mamãe teve gestação difícil, parto complicado e abreviado pra salvar tanto o bebê quanto a mãe. E o pequeno Norberto só sobreviveu por um milagre. Não era assim tão belo, mas fora igualmente amado, aliás, se cuidado era amor, fora ainda mais amado por todos!
O último, Humberto, era como todo caçula, o queridinho da mamãe, o garotinho do papai e o xodozinho dos irmãos.

Foram criados na fé Tradicional e Ortodoxa dos Crentes. Graças a Deus não eram barulhentos como os Pentecostais, nem ‘misturadinhos’ como os Renovados, dizia papai.

Na igreja todos eram amados. Pelo exemplo de amor e família, pelos filhos bem educados e belos. Tá bom que tinha o Norberto que não era lá essas coisas, mas beleza não se põe mesa não é?

Nos grupos sociais todos iam bem, só Norberto sentia-se infeliz.
Gualberto era artilheiro do time de futebol da escola, mas bem que poderia ser zagueiro com aquele corpanzil. Era papo certo entre 125% das turminhas femininas no recreio.
Alberta, ou Betinha como preferia, era ainda linda, mas também estudiosa, quase um prodígio. Como primeira da classe, havia ganhado bolsa de estudos para ela mesma e para seus outros irmãos, menos para Humberto que ainda estava nas fraldas.
Ah, é... Norberto ainda assim estava infeliz!

Não conseguia fazer amigos, não tinha atrativos físicos nem se sentia inteligente. Assim começou a duvidar da fé. ‘Que Deus é esse que fez meus irmãos tão belos, meus pais tão amáveis e a mim deu restos e sobras? Ninguém me quer’, pensava em sua angústia de vida.

Na E.B.D., sempre questionava a professora.
Jesus? Ah, ‘pfessora’ creio sim, acredito que Ele existiu, mas num era o Filho de Deus como vocês crentes ortodoxos pregam, não... isso, acho eu, foi invenção dalgum maluco!”
Por conta disso, era sempre convidado a ficar no corredor, pensando na infâmia que dissera.

Norbertinho não tinha o que queria e nunca quis entender bem isso, então bolou um plano de vida baseado na sua cabecinha infantil. ‘Vou comprar amigos!’ decidiu assim do nada!
Pensou que se pudesse destacar algo de bom nos outros, elogiando, bajulando, poderia fazer parte de qualquer grupo.

Ridiculamente, tentou primeiro com as meninas.
- ‘Oi, posso brincar com vocês?’ Disse confiante.
- ‘Claro que não, isso é brincadeira de menina, ta cego?’ Disse a mais meiga e educada.
- ‘Pôxa, que pena; vocês pareciam meninas tão inteligentes, tão bonitas que mesmo sendo menino pensei em vir aqui ficar com vocês!’
 As meninas se entreolharam... Acertara direto no alvo! Logo lhe entregaram uma boneca de pano, um lugar na rodinha da esquina e um apelidinho que prefiro ocultar.

Foi assim que viveu a vida inteira; agora andava com atletas, patricinhas, pagodeiros, riquinhos, roqueiros, pobrinhos, ‘geeks’ (os antigos c.d.f’s) e demais filões sociais. Era só ver um grupinho se reunindo que queria usar sua técnica para fazer parte da galera.

Na igreja também era assim, claro! Andava com todos, elogiava-os de inicio e já não ficava mais segregado no lado de fora das salinhas de estudos bíblicos, mas lá no fundo ainda não cria que Jesus era o Filho de Deus, pelo menos, não mais filho que ele mesmo deveria ser.

Cresceu, fez muitos cursos, frequentou várias universidades e trabalhou em tantas áreas de atuação diferentes quanto pôde. Tudo meio que simultaneamente. Fez também teologia, não que fosse por paixão ou vocação, mas não poderia esquecer-se de nenhum grupo a que pertencia. E se ficasse sem assunto no meio dos crentes? Fez tudo!

Mas é claro que queria dar um ‘ar só dele’ em tudo que participava, coisa característica dos desajustados sociais.
Com seus amigos não religiosos aprendeu a beber, a fumar e dar ‘uns tapinhas’ no ‘cigarrinho do demônio’, talvez daí tenha vindo tanta inspiração para as colocações que defendia nas rodas de amigos.

Fazia questão de dizer que “amigo não era quem concordava com ele em tudo”, mas Norberto deveria ter muitos amigos verdadeiros sim, viu? Afinal para aguentar tamanha chatice e discordância em qualquer assunto, só mesmo com amigos do peito!

A família continuava feliz. Com amor, beleza e inteligência e Norberto fazia questão de dar ‘pitacos’ em tudo. Nas roupas de patricinha de Betinha, na bola certa pra Gualberto usar, e até na alfabetização de Humberto, hoje homem feito.

Frequentava a igreja e também um bom boteco, fazia de sua liberdade, fruto da Graça, cavalo de batalha. Adorava dizer que era livre para todos, mas nunca conseguiu enxergar as cadeias da falta de amor que o prendiam. Gostava também de dizer que era membro dizimista da fé Tradicional e Ortodoxa dos Crentes, só pra dar uma base de referêcia pra quem quisesse, mas não que fosse assim tããããão ortodoxo, ok?

Tem levado a vida ainda hoje assim, quer fazer amigos em qualquer lugar, mas amá-los é outra conversa! Continua com sua luta contra Deus, acusando-o de injusto, negando a Jesus e a Graça até o osso.

Num dia teve um sonho. Nele Deus lhe aparecia e lhe dizia que tudo tinha um propósito especifico. Disse Deus; ‘Como você pode se sentir assim se de todos os seus familiares você foi o único a ser livre da morte desde o ventre?’
Sorrindo-lhe, Deus lhe apresentara Jesus...

Norberto acordou em polvorosa.
Que sonho maluco era aquele? Não acreditara em nada do que ouvira, embora fosse bem formado teologicamente, lhe faltava a base de tudo: fé, sem a qual ninguém enxerga a Deus.

Imaginou que o sonho era fruto da bebedeira com os amigos na noite anterior e seguiu seu caminhar, convivendo com a dor de ser quem decidiu ser desde pequenino.
Igual ao primo Aroldinho não tinha nada, apenas como ele criou um blog que tá na moda fazer assim. Vive por meio desse, ainda fazendo seus ‘amigos’ em grupos sociais dos mais diversos. Elogiando-os, bajulando-os de todas as formas e dando seus pitacos mesmo em coisas que não sabe, nem sequer quer aprender...
Que pena, Norberto.

Wendel Bernardes





quarta-feira, 10 de outubro de 2012

A história de Alonso, o incompreendido.




Num mundo tão diversificado, com grandes possibilidades e realidades, encontramos todo tipo de gente. Uma dessas ‘gentes’ é o Alonso.
Sempre se sentiu “o cara”. Era “o cara” no futebol e por isso os moleques da rua nunca o chamavam pra jogar pelada no campinho.
Era “o cara” entre as cocotas, por isso seus amigos sempre saíam sem convidá-lo pros agitos da juventude, afinal se ele fosse, pensava, não sobraria cocota sobre cocota!

Conheceu uma professorinha, moradora da zona rural de uma grande metrópole. Era moça simples, acanhada – tímida mesmo – porém jeitosa e formosinha à vista! Com a lábia que cria possuir, Alonso o garanhão do pedaço, adiantou-se na conquista. E não é que levou mesmo?
Será que conseguiu porque a professorinha era do interior e não conhecer as maldades da cidade, ou Alonso conseguira mesmo uma lábia pra ganhar as meninas de verdade? Ninguém sabe dizer, mas até hoje se perguntam todos.

Ficaram juntos uns oito anos. A professorinha era moça acostumada com vida dura, talvez por isso tenha havido tanta durabilidade na relação com esse cara. Mas vivia num inferno! Alonso era um cara chato. A última palavra sempre tinha que ser a dele, coisa característica de gente que não manda nem em treino de time de futebol de botão!

Nasceram lhes dois belos meninos, puxaram a mãe, é claro! Alonso tinha aquele jeito de neanderthal misturado com cara de tratante de filme dos anos cinquenta, desses 171 que permeavam as cidades grandes daquela época, e dessa também!
A professorinha não poderia aguentar mais tempo que isso, mandou Alonso pro sexto dos infernos, porque os quintos, como se diz, já estava lotado. Ele não queria descuidar, afinal, aquela ‘oferenda mal arriada’ não poderia voltar pra sua porta. Vai de retro!

Acha que isto o fez refletir seus gestos? Claro que não! O negócio é curtir a nova vida de solteiro, oras!
Procurou pela velha galera do futebol e pela turma das baladas com as cocotas e não encontrou ninguém. Bom, na verdade encontrou a todos, mas não estavam mais ‘disponíveis’. Todos estavam fazendo coisas realmente importantes tipo; faculdade,  emprego, casamento, especialização na carreira. Que gente chata!

Decidiu viver sua segunda adolescência com 35 anos, que são, segundo ele, os novos 17,5! Namorou, terminou. Morou junto, separou...  trabalhou, encheu o saco do trampo. Comprou carro tunado, vendeu... Foi pra academia, queria ficar sarado, quem sabe aparentar uns 10, 15 anos a menos, ou tantos quantos anos pudesse sugerir!

Mas cansou da segunda adolescência. Decidiu amadurecer também um pouco tardiamente. E o que mais deixaria alguém com cara de maduro senão uma boa religiãozinha. Não passava nem perto da igreja romana, aquela liturgia lembrava muito da professorinha que era bem carola... Ah, não!

Frequentou religiões afrobrasileiras, mas o ‘santo’ não baixava em sua presença. O pai de santo pediu que tão urucada figura caçasse seu rumo, quem sabe no budismo taoísta, no Jorei Center, ou quem sabe uma igreja crente...

Ele não sabia o que era Jorei e acha essa história de budismo e contemplação coisa pra monge dormir... Então só restava a igreja crente.

Passou na porta da Igreja Mundial Universal das Galáxias do Reino de Zeus e decidiu não ficar muito por lá afinal, se eles quisessem fazer um exorcismo não iria dar certo ao exemplo do que aconteceu no centro espírita.

Foi presbiteriano, mas não conseguiu entender esse tal Calvino. Não foi luterano, pois Lutero era por demais revolucionário!  Na assembléia tinha gente que gritava demais e ele não poderia aceitar alguém que gritasse mais que ele!

Difícil essa vida de chatinho, né?

Então se encontrou quando num bar, foi convidado a dar um pulinho na igreja da esquina... Perguntou pro mocinho que lhe evangelizou; “nessa Escola Dominical desce fogo?” o rapaz pensou que o bebum tava zonado com a cara dele, mas foi gentil, como os crentes tem que ser!

E ele foi.
Na aula, fazia diversos comentários que possuíam sempre uma conotação mais coloridinha da verdade. Queria participar do louvor mesmo sem tocar nenhum instrumento ou cantar. Deve ter imaginado que cantar na igreja era dar uma idéia nas irmãzinhas do coral protestante!
Ele explicou que de tantas vezes que ouvira sua musa inspiradora Ana Carla Faladão, poderia ‘ministrar’ em qualquer lugar.

Não passou no teste, mas ficava lá atrás cantando mais alto que os vocalistas pra mostrar seu vozeirão de Pavarotti semitonado.
Ao final do louvor dava notas; hoje foi 5... repetiram muito o refrão e não gostei daquela versão do hino que cantaram.
Um dia chegou azedo e disse assim pro líder do louvor: “Cara, seu louvor é sofrível!” o rapaz engoliu a seco e passou batido.

Foi assediado por uma solteirona, duas viúvas, e um seminarista meio estranho. Rejeitou a todos, ninguém estava no seu altíssimo padrão de mulher (e de homem).

Cansou daquilo também, decidiu seguir seu caminho sozinho, ninguém poderia lhe entender mesmo!
Sua ex, seus filhos, seus amigos, patrões, irmãos na fé... Nem Jesus! Ninguém poderia vislumbrá-lo direito. Era muito complexo, um universo inteiro num corpinho de quase quarenta com cara de trinta e nove e meio...

Quer saber? Antes só que mal acompanhado, disse isso enquanto passou no shopping pra compara umas roupinhas estilo meio colorè...
Renovou seu guarda roupas, seu estoque de chiclete tridents, comprou umas calças laranja fluorescentes dois números abaixo e foi viver sua “terceira segunda infância” pois os 40 são os novos 18!

Vai arrasa, ném!
Wendel Bernardes.

(Postado originalmente no Café com Leite Crente)


sexta-feira, 5 de outubro de 2012

O Samba da Vida de Nice.




Nice era mulata formosa, daquelas que paravam quaisquer pagodes. Era carioquíssima da gema e da casca do ovo, como gostava de dizer ostentando um sorriso de perolado perfeito.

Conseguiu muitas de suas belas curvas nos sobe-e-desce das ladeiras das favelas. Isso mesmo; favelas no plural! Sua família honesta e temente a Deus, como dizia vó Maria, se mudava toda vez que o ‘bicho pegava’ na favela que viviam. 

Então era começar tudo de novo; invadir o lote, cercar o terreno, arrumar madeira pro barraco, ‘chamar na mão’ com o martelo...
Era uma família matriarcal, sua vó Maria e sua mãe Joana, só conheceram homem na hora do ‘bem bom’ como diziam, depois estavam sozinhas na vida, sambando pra não cair. Mas quem disse que Nice se abalava? Cantava sempre um refrão positivo dum partido alto e lá ia agarrar a vida à unha!

Ela fazia de tudo um pouco; faxineira, manicure, arrumadeira, passadeira, etc., mas seu divertimento estava em frequentar a quadra da escola preferida nos ensaios técnicos da bateria. Seu coração parecia explodir ao som dos surdos e tamborins. Era verdadeiro frenesi.

Mas quer saber? Nice tinha dúvidas se a vida era apenas isso. Às vezes, quando chegava de um dia de trabalho, ou mesmo do samba, depois de driblar os barbados louquinhos por um pouquinho mais de seu molejo, deitava sua cabeça no travesseiro de retalhos que vovó fizera e contemplava a majestade do céu estrelado do alto do morro pela fenda duma telha. Aquela mesma que fazia jorrar água nas chuvas de verão (e de inverno também, né?), mas agora a fenda fazia-lhe viajar no infinito enquanto se perguntava quem teria composto essa samba de céu estrelado. Foi talvez a primeira vez que Nice perguntou-se realmente sobre Deus.

Semanas depois, durante mais uma das faltas d’água que assolava a favela, sambando com vasilhames como adereço de cabeça nas vielas, passou num beco e ouviu alguém cantando uma canção que não era um samba, mas que com a mesma alegria falava das maravilhas da criação e de como Deus as fizera, uma a uma...

Pôs de lado a pesada lata d’água e não se fez de rogada, cariocamente bateu palmas e gritou: “Ô de casa!”
Então uma velhinha, mais acabadinha que sua vó Maria lhe saudou com um sorriso meio desdentado, porém franco e sincero.
- Bom dia minha filha, disse a velhinha.
Nice foi direto ao ponto;
- Eu ouvi uma música que falava da natureza, e de como Deus fez tudo nela... a senhora...
- Seu eu canto? Perguntou satisfeita a velhinha.
- Na verdade eu já cantei minha filha, isso que faço hoje é mais um sussurro que canto... e riu de si mesma.
Mais uma vez, de forma direta disse Nice:
- Na verdade quis saber se a senhora é... crente!?
O sorriso da velhinha transformou-se numa gostosa gargalhada vinda da alma e disse:
- Sou crente sim, minha filha, mas já me chamaram também de ‘bíblia’, ‘beata’ e até de coisa muito pior, disse meio corada de vergonha.
-É que eu estava pensando Nele esses dias. Foi Ele mesmo quem criou o mundo? A mim ou a senhora?
- Foi Ele sim, minha linda, Ele me criou, fez a natureza e desenhou você e cada beleza de seu corpo e de seu coração.

Até então Nice não havia imaginado dessa forma, criada pelas mãos de Deus, isso daria um samba-enredo, pensou.
- A qual igreja a senhora pertence? Perguntou já meio sedenta doutra água que sua lata não poderia carregar.
- Sou de Jesus minha linda, mas quando minha pernas fracas permitem, congrego naquela igrejinha azul, perto da Biquinha.
Claro que Nice conhecia a tal Biquinha, afinal a falta d’água no morro num dava tréguas e era de lá que essa moça tirava água, da famosa Biquinha que nada mais era do que um ‘gato’ no encanamento público que servia à comunidade na hora do sufoco.

Decidiu deixar o pagode desse domingo pra conhecer mais do Deus compositor do samba mais belo que já havia sido composto: a vida!
Chegando lá, depois de se arrumar muito bem com seus breguetes como se fora ao ensaio técnico, sentou na frente pra procurar sua amiga, curiosamente não a encontrou.

Embora não conhecesse nadica de nada, achou linda aquela cantoria toda e o pastor falava, segundo ela, igual político que visitava o morro em época de eleição. Sentiu-se honrada de estar ali, principalmente, pois os ‘irmãos’ não a olharam como um pedaço de carne, como os caras do samba a olhavam.

Sem pensar duas vezes, levou seu molejo a frente do altar na hora do ‘apelo’, e chorou muito ao ‘aceitar Jesus’, pelo menos foi isso que o pastor disse que fizera ao ir lá na  frente. Nice gostou.
Seu coração sincero batia ainda mais forte que cada bumbo da bateria da agremiação que frequentava...
Aliás, frequentava mesmo!
Deixou de sambar, parou de ir à quadra da escola. Agora sua rotina era ir aos cultos da igrejinha azul da Biquinha.

Aos poucos largou também seu molejo, suas roupas coloridas foram trocadas por vestidões retos e de cores sóbrias, sem decotes e lascas, como dizia o pastor, andando como ‘convém a uma serva do Senhor’.

Seu sorrisão perolado foi virando agora simples saudação com a cabeça. Os barbados que a seguiam nas ladeiras louvando a Deus por seu rebolado já não a perseguiam mais. Parecia que a igrejinha azul da biquinha ganhara mais uma fiel, mas que o morro perdera muito em não ver aquela alegria desfilando em suas vielas.

Tempos depois, Nice passou com sua lata na cabeça em frente a casa da velhinha que não vira mais. Havia ainda lá uma janela aberta onde uma senhora, bem mais jovem que a velhinha, lhe explicou que Dona Selmira, havia ido cantar seus louvores mais perto de Deus.
Nice entristeceu-se e contou àquela senhora, que julgou ser filha da velhinha, de seu encontro com a doçura que recebera dela.

A senhora com olhos lacrimejantes disse:
“-Então é você?”
Tirou de dentro dum bibelô papelzinho dobradinho várias vezes, meio mal escrito dizendo:
“Mulatinha, nunca deixe de encontrar o Criador em seu coração, é lá que mora tanto Ele, quanto a alegria que Ele mesmo te deu ao nascer!”
Agora eram duas a chorar!
Nice entendeu o recado.

Havia encontrado o maior Tesouro do mundo, mas perdera a alegria e o desejo de manifestar quem Ele é no sorriso sincero que sempre carregara.
Deu uma guinada na vida e percebeu, mesmo com respeito e devoção, que achar o Criador não era perder o que Ele criara!

Hoje em dia Nice samba em louvor ao Senhor que lhe criou e lhe deu vida, e sabe que em seu coração há um bem maior que tudo que o mundo pode dar.
Seu sorrisão está mais brilhante do que nunca, e agora quando olha pras estrelas na mesma fenda do barraco, sabe de onde vem seu ‘brilho interior’, sua alegria, sua paixão pela vida.
Vem do Criador!

Moral da história:
A religião engessa as curvas e o molejo alegre que Deus criou, mas o contato com Ele, liberta de tudo!

Wendel Bernardes.



 (Texto postado originalmente no Café Com Leite Crente e no Conexão da Graça).