sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Não falta mais nada...





Nasceram quase no mesmo dia, separados na verdade por algumas horas. Cresceram juntos, pois eram vizinhos. Brincaram de pique-tá, de tóquinho, esconde-esconde, pique bandeira e polícia e ladrão.
Estudaram juntos numa mesma escola durante o ensino fundamental, quase sempre numa mesma turma. Claro que andavam muito juntos, colados mesmo! Eram como irmãos.

Tinham uma ligação como poucos. Sem falar muito às vezes só de olhar, um já sabia o que o outro queria. Essa integração veio com o tempo e também porque foram tornando-se um pro outro verdadeiro elo pra vida.

Paulo era magro, esguio, cabelos ruivos e crespos. Tinha sardas e por isso foi apelidado de Canela. Marcos era forte, baixinho, negro com cabelos raspados e por conta de sua tara por futebol era chamado de Fominha.

Nem me pergunte quantas piadinhas ouviram ao longo da vida. Trocadilhos por conta de seus apelidos. “Fominha de Canela” era o principal. Pedro ficava irado, mas Marcos dava risadas a todo volume.
Tinham boa vida de moleques.

Cresceram um pouco mais e essa dupla precisou pensar no futuro. Canela queria fazer curso profissionalizante e passou pra uma famosa escola técnica pública do Rio. Já Fominha focou tudo nos estudos regulares e por fora fazia cursinho pré-vestibular. Mas mesmo com a agenda agora diferente ainda se viam sempre, afinal eram vizinhos porta a porta e costumavam fazer barulho na parede pra saber quando chegavam. Aí era fogo, iam pro muro e botavam os assuntos em dia até as tantas.
Tudo bem nessa amizade gerada na cumplicidade e franqueza. No ‘coleguismo’ como seus pais diziam...

Certo dia no ponto de ônibus, Canela do nada sofreu um desmaio. Não por acaso foi socorrido pelo melhor amigo que também estava no ponto pra escola. Exames daqui, transferências de lá e o papo tranquilo dos amigos de infância ficou um pouco menos alegre. Canela estava seriamente doente.
Quase desistiu de tudo quando soube que a vida seria uma barra, isso se conseguisse superar alguns obstáculos. Parece que vira seus sonhos saírem voando pela janela. Como bom amigo, Fominha vestiu a camisa e deu ao ‘quase irmão’ a força que precisava. Aliás, essa história era uma brincadeira frequente entre os dois. Diziam sempre que eram quase irmãos e separados apenas por um muro!

Então Fominha não poderia fazer nada menos que juntar a galera da rua, ir até a escola técnica e agregar a turma de lá. Nessa cruzada contra o tempo chegou até a ir a alguns programas de rádio locais pra somar força à luta. As redes sociais bombaram de correntes positivas! “Força, Canela” era o lema da corrente do bem.

Ele mesmo se encarregava de gravar vários vídeos diários e mostrar as mensagens positivas no quarto de hospital pro Canela. Era a melhor hora do dia... na verdade, a única que prestava no momento.

O elo entre os meninos só aumentou, mas as coisas estavam mesmo piorando pro Pedro. Só poderia sair dessa com transplante de medula óssea, e como isso é demorado e complicado mesmo hoje em dia, tudo se tornava verdadeira tortura pro Canela.
A família fez os exames e nada... então, iriam aguardar pelo cadastro nacional de doadores. A maior dificuldade ainda estaria por vir.
Verdade... dureza pura.

Se o destino não corroborasse com um milagre que sempre se precisa, tudo poderia estar no fim. E os milagres chegam no tempo certo. Inacreditavelmente Marcos era o doador compatível. Como pode? Bem ali do lado, durante a vida toda estava a salvação de Pedro, num salto de um muro!

Todos os procedimentos foram feitos e, graças a Deus a cirurgia foi um sucesso! Canela passa bem e esta a cada dia se recuperando mais, porém agora vai ser obrigado a ouvir outra piadinha dessa vez de seu grande amigo.
“Cara... você só se salvou porque agora tem um pouco do meu sangue aí contigo...!”
Riram litros dessa afirmação, mas uma coisa Pedro fez questão de frisar:
“Mano, se faltava alguma coisa pra sermos irmãos de verdade,
agora não falta mais nada... tem um pouco de você aqui comigo, né?”
Era verdade, não faltava mais nada.

Wendel Bernardes.

terça-feira, 20 de novembro de 2012

Milagres Diários.



Passou o final de semana inteiro enfornada no quarto. Ouviu toda a coleção de discos de Rock de seu irmão e ainda tomou escondida uma garrafa (inteira) dum Don Perignon que seu pai trouxera de sua última viagem a França, pouco antes de quebrar com a empresa de advocacia que estava há três gerações na família. Quando ele descobrir que a garrafa da ‘ocasião especial’ se fora.... hummmmm!

Estava assim ‘meio que na fossa’ por conta da sua vida. Tudo estava tristemente condenado em sua adolescência. Fotos suas em situações constrangedoras foram divulgadas na web por uma ‘bad girl’ da escola, brigara com sua melhor amiga e se tudo já não fosse o suficiente ainda foi vítima da pior coisa que uma garota poderia conceber: uma espinha terrível bem na ponta do nariz...
- Cara, tô a cara da rena do nariz vermelho... Se fosse natal papai Noel ia me amarrar num trenó!!!

E como nada vem sozinho o carinha mais show de bola da escola inteira nem dá ideia pra ela. E fica pensando: Imagina se ele viu as fotos!! Morte social na certa!!

Mas a segunda feira estava por chegar e mesmo com a dor de cabeça causada por um bom vinho tomado de goladas (que pecado) ia ter que subir num salto e provar que era digna da reputação que criara durante esses anos todos! Pense se iria dar mole? Jamais!

Assim que levantou notou que o tempo abriu. O final de semana que fora chuvoso, maior pinta de cidade européia, sumiu como que por encanto, e o sol brilhava lindo, com apenas poucas e espaçadas nuvens no céu. Alias lindas nuvens por sinal. Abriu como uma verdadeira moldura abençoando começo tão belo dum dia que seria uma joça!

Desceu imaginando que a bronca por causa do Perignon seria ‘sinistra’, mas notou que mamãe estava especialmente carinhosa hoje. Era alguma coisa sobre uma tia doente que saíra do coma, sei lá... Coisa assim. Bom, valeu assim mesmo, né? Não sabia ao certo o que seu pai diria por conta do vinho, mas aí já é outra história.


Olhou pro relógio e descobriu-se atrasada... (que novidade!) agora só a amiga poderia lhe salvar passando aqui pra uma carona. Olhou pro celular e imediatamente lembrou-se da briga entre as duas. Quando imaginou que tudo poderia ser pior, notou alguns torpedos e dentre eles um da amiga dizendo: Olha, foi mal por tudo na sexta... Vamos deixar tudo pra lá... Te pego segunda cedinho, viu? Bjus!
Cara, como assim? Como pode tudo estar se ajeitando mesmo sem esforços hercúleos? (e que parada de ‘hercúleos’ é essa que nem sei o que significa?).

Confabularam pra caramba no carro até a escola sobre o final de semana das duas (uma sem a outra, coisa rara!), mas do que mais falaram foi das coisas da semana anterior e em como deveriam se vingar da tal bad girl da escola. Uh, que garota invejosa, cara!

Outra coisa que a estava preocupando era imaginar seus grupinhos e ela estava envergonhada demais pra sequer dar bom dia a alguém. Já imaginava os sorrisinhos falsos, as repercussões das fotos... Mas chegou e já tinha gente na porta pra ‘guiá-las’ até a sala... Parece que aquele final de semana fora muito sem graça pra todos, queriam amigos pra curar o marasmo! Ninguém disse nada, nem um risinho, nem olhar atravessado... Nada!

Algumas aulas de filosofia chatas depois e esbarrou como que do nada com o tal carinha. Meu Deus, como estou...? Só aí se lembrara da tal espinha sinistra que a deixara qual a rena de Noel... peraí... que espinha? Claro que se olhou no espelho milhares de vezes hoje. Como não notaria uma espinha sequer? Inda mais aquela monstruosidade!

- Oi.. Ele disse, como você está? Emendou.
- Eu, eu, eu...
- bom cê tá legal, né? Tô vendo!
- Ah sim, agora tô mesmo!
- Ei, sabia que vai rolar um grupo de estudos em geografia? Bom, eu vou, pois tô de recuperação esse bimestre, tu vem?
Ela era fera em geografia, mas num iria perder essa oportunidade por nada nessa vida.
- Claro, depois me passa as datas e os horários e estarei lá, com certeza! Sorriu enquanto segurava forte seus livros contra o peito.

Não podia acreditar... Ele quebrou o gelo, ele falou com ela! Impossível!
Doida pra contar a amiga até caçou o celular no bolso, foi então que percebeu que o perdera. Pronto, era o que faltava pra estragar o dia, celular caro, verdadeiro computador de mão. Se perder, papai me mata na certa, pensou!

Foi à sala de aula, perguntou pra galera, e nada! Pronto... ‘deu ruim’! Foi quando um senhorzinho da faxina disse:
- Procurando algo?
- Perdi meu celular, o senhor viu tio?
- Já procurou na sala de achados e perdidos?
Ela achava que ir a sala de achados e perdidos era pura perda de tempo com o perdão do trocadilho (e trocadilho ruim, claro), mas era só o que poderia fazer, então foi.

Chegando lá a coordenadora agiu com certa simpatia, coisa pouco peculiar, né?
- Dona, perdi meu celular... tá aqui?
- E como é?
- Preto, tela grande, coração de pedrinhas brilhantes. Inconfundível.
- Deu sorte, menina, quem entrega essas coisas hoje em dia?
Verdade pura, pensou. Antes de sair agradeceu muito e viu plástico colado no vidro da janela que versava:
“Nada é por acaso!”

Aquela frase lhe chamou a atenção de um jeito que até parecia sinal sonoro tocando pra saída! Ah, e era o sinal mesmo! Ficou imaginando o que havia feito pra esse dia ter sido tão especial... Mesmo sem expectativa de coisas boas pra hoje e ter vindo de um final de semana tão ruim.

Como que por milagre ou coisa assim lembrou-se de uma cena na sexta de madrugada em que encolhida entre seus travesseiros e edredom fez uma prece em meio as lágrimas:
‘Por favor, preciso de uma nova chance!’

Será que a prece sincera a salvara naquela segunda feira linda?
Sendo isso ou não nunca saberia, o fato é que decidiu aproveitar o ensejo e seguiu o fluxo da vida, afinal, alguém em algum lugar deveria amá-la mesmo!

Wendel Bernardes.

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

A Fuga...



Ele atravessa o farol vermelho criando uma grande confusão atrás de si. Gritos e palavrões dos transeuntes são ouvidos, mas sua preocupação é maior... ele sabe que seu carro compacto não foi feito praquilo. Olha desesperadamente pro retrovisor e sim, o sedan negro ainda está lá na sua cola.
Enquanto pisa fundo no acelerador sem a resposta desejada abre-se uma tela dolorosamente real em sua mente.

Imagens em tons de sépia porém de um passado recente. Seu estômago se embrulha e não é por conta das manobras arriscadas que faz nas ruas apertadas do Centro do Rio. Desejaria que todo o seu passado ficasse enterrado, mas certamente o ‘paleontólogo’ do sedan negro achou certos ossos secos escondidos e quer algum tipo de vingança.
‘Paleontólogo’? O que estou dizendo?
Decide acelerar ainda mais sem resultado então a única coisa a se fazer em sua mente é despistar seu algoz. Ganhar tempo, quem sabe até para buscar veículo mais veloz.

Para seu carro num semáforo e nota bem perto um estacionamento público onde percebe carro esporte, janela aberta, som ligado e ninguém com cara de dono próximo. Não poderia ficar muito tempo a decidir... Leva coisa de dois minutos para trocar o carro e em sua fuga deixa curiosos os camelôs que desfrutavam dos batidões que vinham do som interno do esportivo.

Não há sinal do perigoso sedan negro, apenas carros piscando pedindo passagem, em alucinada febre. Tudo para nada! Minutos depois estão todos em engarrafamento na altura do Caju, Zona Portuária do Rio. Nem ar condicionado ligado o faz parar de suar e o tremor das mãos indica que o medo continua presente em sua vida.

Ainda ontem estava tudo bem. Lembra-se dos filmes que assistiu com seus filhos em casa e do jantar que sua esposa lhe servira. Tudo a contento. Mas agora isso significa pouco, os fantasmas lhe assolavam.

Ficou tão absorto que quase tomou o caminho de casa. Se ligou a tempo que estava num carro roubado e que a esse momento as câmeras da administradora da Avenida Brasil já teriam lhe filmado dezenas de vezes.
Precisava se livrar do carro e pra isso decidiu usar um ponto cego das câmeras. Havia um espaço bom e muito ermo entre Deodoro e Realengo, logo abaixo da Avenida. Câmera alguma, pouquíssima luz, e apenas uma pista de acesso à Avenida... Perfeito!

Estrategicamente saiu do carro e com sua camisa que usava por cima de outra limpou maçaneta, painel, volante... deixou absolutamente tudo ‘limpo’ de digitais. abandonou o carro roubado, lançou a chave longe.

Agora usando apenas a camisa de baixo, andava bem longe das possíveis câmeras da prefeitura. Não poderia simplesmente voltar à pista por isso mais uma vez agiu por instinto. Tomou um taxi que o deixou a três quilômetros de casa. Era um bairro movimentadíssimo de subúrbio, principalmente no verão onde todos saem às ruas.
Não há sequer sinal de alguém à sua cola. Ou conseguira despistar bem... ou estava mais uma vez fugindo de nada!!!

Minutos depois chegou em casa e a cena familiar suburbana clássica se apresentou. Seu filho menor lhe abraçou em festa, e checou-lhe os bolsos como que procurando um chocolate, bala ou souvenir. Sua filha adolescente de frente ao PC mal lhe olhou. Sua esposa com feições de exausta terminado o jantar lhe perguntou em tom de curiosidade:
- Demorou...
- Vou tomar um banho, estou com calor...!
Aparentemente tudo normal, ninguém lhe seguira, sua família estava bem. Estava preocupado a toa. No banheiro, de frente ao espelho tentava bolar mais uma desculpa pelo atraso, e ainda faltava explicar a ausência do carro.
Nem me lembro onde deixei... as rugas lhe surgiam numa velocidade incrível. Tudo resultado de seus erros e das mentiras frequentes que contava para encobrir seus pecados.

Mas era mais fácil assim, mesmo nessa cruzada inacabada e doentia. Amanhã será mais um dia... não sabe se será perseguido por mais um sedan, por moto, por gente a pé, ou somente pelos seus temores e demônios, mas essa foi sua escolha, melhor assim!
Prefere a tormenta do que revirar túmulos e expor fantasmas. Não poderia jamais mudar o passado, mas decidira moldar o futuro como se fosse um oleiro sempre fazendo obras a partir de cacos velhos de barro. Essa é sua vida e não está aberta a visitação... de ninguém!

Mas... será que esse 'passado' de fatos trumáticos e escondidos fora real? Será mais um fruto de sua mente angustiada?
Perguntas sem respostas, guardadas à sete chaves numa mente caótica!

Wendel Bernardes.

sábado, 10 de novembro de 2012

Mudanças da Estação.




Quando chegou o outono ela decidiu mudar sua vida. Não sabia ao certo se era por causa do clima ameno e da melancolia das folhas mortas espalhadas no chão, mas era fato que a estação não foi escolhida por acaso.

Levantou-se uma manhã a ao abrir a janela sorriu estranhamente. Não era um sorriso de alegria, nem mesmo ironia ou coisa assim... Apenas sentiu o vento frio, seco e contínuo cortando-lhe o rosto. Aquilo lhe servia de energia, uma confirmação do que estava em seu coração para fazer.

Lavou o rosto, arrumou-se de seu jeito urbano e adorou o que vira no espelho. Era simples o bastante para manter em sua bolsa apenas o necessário (o que na cabeça da maioria das mulheres era algo inconcebível). Conferiu coisa ou outra e saiu do quarto decidida como nunca.

Ao passar pela sala acenou sutilmente com a cabeça aos presentes. Um senhor bigodudo, calvo e ranzinza, ainda folheando seu jornal matinal resmungou:
- Procure não voltar tarde...
Ela nem sequer respondeu.
Foi aí que uma senhora magra de cabelos encaracolados e ruivos, vestindo estampa que parecia ter saído de figurino que retratava a Era Vitoriana disse:
- Mas o café é importante, você precisa tomá-lo... Sente-se aqui...
Ela fitando sua mãe como que assistindo a uma reprise chata apenas disse: - ‘Não’!

Enquanto cruzava já a varanda lembrou-se da noite de ontem, das palavras duras do pai e da omissão da mãe em lhe proteger. Hábitos cíclicos! Não era moça de coisas erradas, mas as palavras e as omissões a feriam cada vez mais...
Eram imagens e sons que preferia ocultar da mente jovem, porém acostumada aos sofrimentos caseiros.

“Palavras duras em voz de veludo e tudo muda; adeus velho mundo...” foi fazendo dessa canção seu hino que decidiu que jamais ouviria mais uma vez o que ouvira na noite anterior. Passou pelo portão sabendo que não seria a ultima vez que o fazia, mas o fez de um modo que nunca mais voltaria a fazer.

Olhou na bolsa, juntou os cartões, passou no banco sacou o que tinha. Adquiriu até empréstimo com os juros que tanto adiava. Deu uma graninha razoável. Afinal tava trabalhando duro havia um tempo e juntou em seu cofrinho de confiança, grana para suas emergências costumeiras. E não foram poucas.

Agora era apenas ela e só!

Comprou jornal, sentou na praça e olhou os classificados. Nada convidativo. Era inteligente a ponto de saber que não poderia fazer nada que não fosse ao seu alcance. Todos os aluguéis estavam salgados demais. Pegou o celular e ligou pra alguns amigos... Mas nada.  Ninguém poderia lhe ajudar. Costurou na boca um semi-sorriso. Sabia que aquela tarefa amigo algum poderia lhe ajudar mesmo. Era coisa pra ela e só!

Sem se desesperar saiu em busca de alguma placa, ou faixa que sinalizasse sua liberdade. Meio sem perceber entrou numa van e deixou seus instintos lhe guiarem.  Saltou coisa de dez ou quinze minutos depois num ponto em uma estrada conhecida. Não sabia bem se já passara ali com amigos, ou a trabalho...

Guiando-se em seus costumes viu plaquinha mal escrita, convidando ao aluguel de quarto simples para solteiros. ‘Eu mesma’, pensou!
- Bom dia.. Disse pra alguém na varanda.
- Sim? Respondeu uma velhinha.
- A vaga está preenchida?
- Da casinha? Oh não... é pra você?
- Na verdade, sim... posso ver?
- Claro, será um prazer... só um instante.

Entrou, calçou sandálias gastas, passou as mãos no cabelo ondulado e posto em coque e posicionou os óculos pesados e de grau.
- Me acompanhe minha filha...

Era um corredor de piso simples, a cara do subúrbio, feito de caquinhos de sobras de pisos e azulejos de obras anteriores. Basicamente vermelhos. Abriu porta regular de madeira antiga, com o ar que se deslocou sentiu um perfume que lhe fez fechar os olhos: era madeira de sândalo. ‘Porta antiga, madeira boa...’
Essa frase seria dita por seu avô, que era carpinteiro desde menininho e quando viu nascer seu primeiro neto, que na verdade era ela, quis ensinar os detalhes da profissão.

Sabia a melhor madeira pra quase tudo, e como não conhecer um cheiro tão familiar?
Abriu os olhos e deixou pra trás aquele instante que lhe lembrou do homem que mais amou na vida!

- Filha? Tudo bem? Parece distante?!
- Desculpe, lembrei de alguém... mas já passou.
- São nossas lembranças que nos fazem quem somos sabia? Guarde-as sempre com você!
Fez daquela frase de efeito seu lema praquele dia.

Olhou a tudo em volta e era bem pequeno. Pequeno a ponto de com poucos passos cruzar toda a casinha. Como tinha pensamento positivo logo disse pra si mesma; Melhor assim, haverá pouco trabalho na hora da limpeza.

Por milagre ou não, alguma mobilha ainda poderia ser alugada junto da casinha. Um velho baú para roupas revestido com pátina provençal. Uma cama de casal de madeira clara e uma mesa antiga, com cara de anos setenta com visual quadrado e pés fininhos.

- Quanto custa?
- Quanto você pode pagar?
- Um pouco abaixo do mercado...
A velhinha olhou-a de cima a baixo como que a sondando, disse:
- Fechado, você num tem cara de caloteira, nem dessas bandidas doidas que rondam a cidade. Tem cara de menina de família.
‘Família’... essa palavra de novo, pensou meio amargurada.

Aquilo parecia o tal milagre que vovô sempre lhe falava. ‘Olha eu pensando no vovô de novo...’
Agora era só pegar suas roupas e viver o primeiro dia do resto da sua vida. Deu um sentimento estranho em seu interior. Era mistura de medo de dar errado, com o medo da liberdade. Ta... era tudo medo, mas eram medos diferentes, né?

Assim que pegou as chaves e pagou a tal da luva pra senhoria, deitou-se no chão de tacos de madeira, com os braços por detrás da cabeça e pensou lá longe em sua trajetória.
Sua vida estava definitivamente sendo reescrita e dessa vez era ela quem manuseava a caneta.

Olhava para o teto com simples arranjos de gesso antigo (foi aí que notou que tudo precisava de boa pintura), mas logo seu olhar atravessou o teto. Estava no infinito. Não pensava em ninguém, não estava ali por causa de ninguém... aquela era hora de se curtir, de se conhecer, de ser ela mesma.
Que solidão que nada, ela estava era querendo se encontrar!
Sabia que não seria fácil, mas pra alguém que sempre se virou na vida, mesmo debaixo das asas dos pais, isso seria menos ruim.

Pensou nas possibilidades, esqueceu das coisas que passam na TV e do glamour que a mídia passa em morar sozinha e sorriu. Agora aquele sorriso era mais maduro, mais definitivo. Ainda num era de alegria, também num era também de ironia, mas era a certeza que a felicidade tava pra chegar.
E quando a tristeza batesse na porta, era só fechar os olhos, lembrar do vento gelado de outono que a fez abrir suas velas e simplesmente: navegar!

Wendel Bernardes.

O trecho da canção usada no texto refere-se a música “CuideBem de Seu Amor” dos Paralamas.



segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Andando com Fé...




O sol surgiu depois de dias de tempo ruim com chuva fina. A tal da frente fria que veio do Sul não a deixou nem um pouco feliz.
Era carioca da gema, adorava se expor ao sol como ela mesma dizia; ‘Sol recarrega as baterias’. Sua vó tinha outras teorias, achava que era coisa de lagarto... adora ficar numa pedra “quentando o sol”. De fato parecia coisa de bicho de sangue frio, viu?
Mal secou a laje e lá foi ela “se bronzear”.

No kit bronzeamento não poderia faltar um baldinho pra jogar uma aguinha vez em quando, uma daquelas caixinhas de som cintilantes (e barulhentas) que comprara na Uruguaiana pra ouvir seus ‘batidões’ e o principal... um preparado líquido que quase efervescia. Base de óleo mineral pra dar liga, essência de jasmim pra deixar a pele perfumada, pó de café e extrato de urucum pra dar a cor. Meu Deus, que algum dermatologista apareça por lá... senão será queimadura de todos os graus!!!

Era feliz assim, curtia uma balada, namorava ‘pra dedéu’ e dançava como poucas. Podia vir de tudo; samba, pagofunk, forró, baladão sertanejo... Sabia de todos os passos e as letras estavam na ponta da língua. Só dava uns moles nas letras em inglês, nessas ela mandava um ‘embromation’ mesmo. Importante era curtir!

Aprendeu com a tia Neuza, integrante da velha guarda da escola do coração e presidente de honra da Associação de Moradores da Comunidade a se virar fazendo cabelos.
Topava de tudo um pouco nessa empreitada; era prancha, escova de chocolate, morango e outras frutas silvestres (com muito formol, claro), queratinização, tintura, babylyss...
Fazia tranças nagôs, dreadlocks e coisa e tal. Num gostava muito era de cortar o cabelo das clientes. Sempre dizia que era porque errava a mão, mas na verdade é que cabelos curtos significava serviços mais simples, né? E como ela num era boba nem nada...

Um dia voltando num baile notou uma movimentação já tarde da noite na casa de uma vizinha. Curiosa como poucas, foi lá conferir. Descobrira da pior maneira possível que era uma boa amiga sua, mais ou menos da mesma idade que acabara de fazer ‘a passagem’.
Menina nova, parceira de muitas festas (e de algumas pegações) teve uma síncope do nada e sem mais nem menos “cantou pra subir”.

Depois do impacto habitual chorou litros.
Claro que sentira a morte da amiga, mas o que mais lhe marcara era a forma precoce de morte. “Sem aparente explicação, jovem e saudável... poderia ser eu!”

Foi aí que começou a pensar mais na vida, no futuro e a se cuidar do jeitinho que achava melhor. Cortou a cervejada, o excesso das festas e deu um tempo nas gorduras dos churrascos, até na feijoada das sextas com pagode de mesa deu uma maneirada.

E não fez só isso, aproveitou a vibe filosófica da tia Neuza que dizia que “seguro morreu de velho” e procurou auxilio espiritual. Foi na paróquia da comunidade e conversou com o padre; queria saber se ‘terminara suas obrigações com Deus’... Na cabeça dela essas coisas eram iguais a cartão de vacinação, se não estiver em ordem o bicho pega... Deus me livre!

Aproveitou o ensejo e foi logo no pai Toninho, o pai de santo da favela. Lá, entre baforadas e tambores, queria fechar o corpo, mas abrir os caminhos... Enfim, qualquer coisa que a deixasse ao menos conhecida dos orixás. Tudo foi feito segundo os seus desejos.

E como ninguém é de ferro foi também na Igreja Renovada Pentecostal do Bate Coxa pra ver se dando o dízimo deixaria Jesus ligado de que era boa moça. Se Jesus gostou eu num sei, mas o líder de lá...

Fora isso aproveitou a oportunidade e dançou com as batucadas dos Hare Krishinas mo Largo da Carioca, tomou passe no Jorei Center do bairro, jogou flores pra Yemanjá, frequentou showmissa carismática e tomou água fluidificada da oração das seis da tarde do homem de jaleco branco da TV.
Uma coisa te digo, disposição ela tinha, e como tinha!

Depois de tudo ficou mais confusa que nunca. Tudo bem que segundo sua visão agradara todos os deuses das religiões mais em voga, mas qual seria seu destino no ‘além vida’?
Iria pro céu dos crentes? Reencarnaria numa forma de vida mais evoluída? Vagaria sem luz? Iria ao paraíso?

Naquela noite nem pôde dormir, era como se esperasse a ‘morte acordada’, ficara chocada! Rezou, acendeu vela, fez mini-jejum... Tudo, tudo!
Lá pras tantas dormiu. Fora vencida pelo cansaço! Até hoje ela nem sabe explicar o que aconteceu depois, só jura de pés juntos que num pôs um gole de coisa alguma na boca!
Mas vira uma luz e no meio dela ouvira uma voz potente, porém branda, amável que lhe chamou pelo nome e perguntou o que ela procurava
- Eu procuro paz, respondeu.
- Que tipo de paz? Retrucou o Ser Iluminado.
- Paz eterna... Ei, não que eu queira ir agora, eu tô bem por aqui mesmo, tá? Mas penso no futuro, né?
- De tudo que você procurou, o que te deu paz?
- Quer saber? Senti paz em nada, viu? Tudo me confundiu mais a cabeça... Era ‘obrigação’ daqui, compromisso de fé dali... Mas sossego que é bom, necas!

A voz pausou e ainda mais docemente disse:
- Tudo que você precisa é entender que o seu coração, que é o seu entendimento, deve se entregar completamente a quem te faz sentir mais completa, a quem te trás vida! Vida abundante!
E continuou dizendo:
- Não há nenhum preço a pagar que já não tenha sido pago... Nenhuma obrigação que já não fora feita, ou ainda esforço senão o de entender que você é extremamente amada. E que é importante da maneira que você é, e o resto está consumado!

Dito isso silenciou a voz, a luz se apagou e ela pulou da cama, pois tava atrasada para a primeira cliente do dia... No caminho ficou pensando no sonho, aquela voz lhe tirara o medo de ‘partir’ e estranhamente lhe deu paz. Olhou para o céu e viu que o tempo iria virar de novo.

Quer saber? Chovendo ou fazendo sol o negócio e ser feliz e ter paz!
Prosseguiu na vida e procurou obedecer à voz, afinal
“Andar com fé é bom,
Que a fé não costuma falhar..”

Wendel Bernardes.









quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Valeu...




Corria na orla enquanto uma chuva fina caía em seu rosto. Não morava perto do mar, mas essa era sua rotina. Cruzava boa parte da cidade de transporte público só pra curtir esses momentos. Como vinha da Zona Oeste começava por São Conrado.

A vista linda, a espuma perfeita, o cheiro do mar... Nada poderia lhe fazer deixar de viver esses momentos. Aquela era a sua fuga, sua sala de análise, sua terapia. Nada do que poderia ouvir de um profissional de psicanálise lhe traria tanta paz quanto respirar aquele ar, endorfinar às vezes ao som do vento, às vezes tendo por companhia um classic rock que trazia em seu player.

Quem o vê de longe não sabe quantas dores seu corpo é capaz de suportar, quem o vê correndo nem sequer imagina os demônios que carrega consigo.

Aos 12 viu seu pai morrer pelas mãos de um velho amigo da família.
Era final de tarde e a música do pequeno rádio de pilha fazia fundo para a desgraça que seu ‘padrinho’ lhe causou. Três tiros no peito e seu único amigo se foi.

Sua mãe não bancou a sina de ter seu marido assassinado. Crime passional, diziam todos. Disseram pra ele que seu pai ‘amava demais’, era outro têrmo pra quem (como se diz no subúrbio) 'pula a cerca'. A pressão fez sua mãe fugir e lhe deixar como única vítima do descaso.
Pressão? Não seria vergonha??

Aos 12 anos virou homem. Foi criado por ele mesmo. Chegou a furtar pra matar a fome, cheirou cola pra simular calor. Tanta coisa lhe aconteceu até os 14... Quando tudo na vida dele rumava pra virar mais uma estatística, lhe viu chegar de manso um homem de meia idade, roupas modestas porém limpas e dignas.
Usava barba rala e nas mãos uma sacola plástica translúcida. Nem precisava abrir tudo pra saber o que tinha na sacola. O cheiro lhe socou o rosto: comida!
O homem chegou de manso como quem quer catar bicho fujão na rua e lhe deu a mão apresentando-se.
Nem ouvira nome ou coisa assim. Havia acabado de fumar um baseado e a fome de dias lhe foi potencializada à mil. Comeu como bicho fujão... afinal o senhor chegou do modo certo.

Algumas semanas se passaram nessa rotina agonizante até que ele perguntou:
- Quem é tu?
- Marcos... e você?
- Tu escolhe... muleque, pivete, vaporzinho, dimenor...
- Mas qual é seu nome de verdade?
- Pedro.
- Sabe o que significa o seu nome, cara? Quer dizer ‘pedra’, sabia?
- Devo ser pedra ‘mermo’...
- Mesmo!
- Oi?
- Se diz ‘mesmo’ com ‘s’...

Naquele bate papo informal depois de semanas de quentinhas e lanches, nasceu uma amizade incomum. Marcos era professor universitário, separado por duas vezes da mesma mulher. Nunca tivera filhos, sempre sonhou em tê-los.

Pedro, depois de algum tempo, ganhou mais que apenas comida pra matar a fome doida. Ganhou instrução, oportunidade, um teto, carinho e atenção.
Depois de uns anos, já com 16 pra 17 um dia perguntou ao seu salvador: “Posso te chamar de pai?”
Marcos jamais sentira tanta emoção. Aquela frase suplantou cada coisa por ter abrigado um pivete em casa. Foi chamado de louco por se intrometer... Disseram que os adotivos sempre vão embora ao final. Foi até acusado de pedofilia!
Seu coração era vazio de um filho, e a vida lhe trouxe um que buscava o amor de um pai.

Seus finais de semana eram à beira mar. Ali jogavam bola, comiam peixe na brasa, ouviram música nas rodinhas que se formavam nos luaus.
Mas Marcos também se foi. A vida permitiu que ele e Pedro caminhassem pouco, porém de forma intensa! Foi levado por sua saúde meio fraca. Quem sabe por conta das madrugadas perdidas ‘dormindo’ sobre os livros pra poder se formar.

Hoje mesmo sem seu pai do coração, a outrora pequena pedra agora feita em rocha, corre no lugar onde se sente mais à vontade pra matar a saudade e de certa forma agradecer àquele homem honesto e simples que com amor o fez vencer.

A chuva desse dia nem o incomoda mais. Nem mesmo a distância percorrida. Olha só, já estou no Leme, pensou! Está mesmo longe de onde começou a corrida. Longe mesmo foi onde chegou na caminhada que não deve acabar tão cedo.
Ele sorri de olhos quase cerrados e diz em palavras baixas:
“Valeu...PAI!”

Wendel Bernardes.


(Canção sugerida pro texto Meu Guri - Chico Buarque)