Havia um som contínuo em sua cabeça, mesmo que não soubesse
explicar que som era esse. Ele estava lá, martelando, soando, doendo mesmo. Ele
sempre teve a impressão de que sua vida não lhe pertencia de verdade. Embora
essa ideia fosse idiota de se comentar com as pessoas ao seu redor, mesmo aos
poucos amigos que lhe restaram.
Começou a se arrumar para trabalhar. Pegava cedo, bem cedo.
Precisava estar antes dos fornecedores chegarem. Quando o pequeno caminhão
parou de frente a uma lojinha com portas e janelas de madeira trabalhados a
mão, os que se arriscavam a olhar jurariam que tratava-se de uma marcenaria,
mas as flores começaram a bailar num ritmo frenético.
Rosas de todos os tons, orquídeas, crisântemos, violetas... Cores
afinal!
Depois de tudo estar devidamente em seus lugares ele
simplesmente assina a guia que fica em seu poder e libera o cara da entrega.
Não dá sorriso algum, mal responde a saudação de bom dia do trabalhador que lhe
ajuda na loja.
Seco, duro, com feições quase que doloridas, mantém a ordem
da vida que lhe foi imposta. Não consegue lembrar como começara tudo.
Quem comprou aquela loja? Quando decidiu ser florista? Justo
florista!
Estranhamente possuía um bom manejo do estilete e retirava
espinhos como ninguém. Era tarefa fácil, e aparentemente a que mais lhe
agradava. Quem sabe trabalhar só sem participação de ninguém, quem sabe
simplesmente não seria por ferir a flor, por mutilá-la. Mesmo assim aquela
função estava longe de lhe proporcionar alegria.
Depois de oito horas de trabalho ele simplesmente fecha a
loja em sua rotina cíclica, veste o costumeiro casaco acinzentado de couro
gasto e carcomido, ajeita algo parecido a um gorro em sua cabeça e acendendo um
cigarro, some quase como que fugindo.
A dor seria sua única companheira não fosse o zumbido
infernal. Chegou a pensar em consultar um especialista, porém como não
conseguia confiar em ninguém seria um desperdício de tempo. Outra possibilidade
de não se consultar vem do fato dele não poder ajudar muito ao doutor. Imagine
só a sucessão de perguntas sem respostas. Não por conta de sua personalidade
magnética, não dessa vez... Mas sim por causa da ausência de qualquer fato
passado, a não ser por flashes desritmados, como que filmados por cinegrafista
inexperiente, de um passado remoto... creio que da infância, quem sabe?
Pouco se olha no espelho, mas quando o faz nota cicatrizes
em sua fronte, parecem cortes em forma de cruz, ou em xis, como queiram. Mas
acerca disso nada sabe. Mas desconfia.
O medo de ser um monstro lhe aterroriza mais do que qualquer
outra coisa. Mas procura não pensar nessa questão durante tanto tempo. Lembra
meio que vagamente da frase de certo alemão que disse que quando se olha por
tempo demais para um abismo, o abismo olha para dentro do observador.
O medo de receber piscada do abismo é muito grande. Então,
decidiu viver ao acaso.
Mas as respostas não ficam alheias as perguntas durante
muito tempo.
Certo dia, no meio de uma tarde de inverno, com pouquíssimo
movimento quase sem flores à venda, percebeu que alguém lhe olhava.
Estranhamente possuía a destreza de um bom observador e a perspicácia de
poucos. Saiu pelos fundos, aproveitou o trânsito fluente do sinal aberto e como
um fantasma atravessou a rua dando a volta por uma velha banca de jornais.
Atrás dela surpreendeu homem cerca de 10 anos mais jovem que ele, vestido com
bom gosto, cabelos curtos e jeito estranho. Parecia procurar algo; ou quem sabe
alguém.
- Posso lhe ajudar?
O estranho se vira como que pronto a revidar um golpe
- Como você chegou aqui? Vejo que não perdeu o manejo da
profissão!
- Sou florista, amigo, deve estar me confundindo com alguém,
ou quem sabe estranhando minha ocupação.
- Então é verdade...
- Verdade?
- Que você não se lembra mais de nada.
Aquele papo estranho e meio furado estava tirando-o do sério.
Decidiu encurtar à sua maneira. Agarrou o cara pela lapela e disse:
- Se você está aqui por que quer me dizer algo, desembucha
rapaz, ou então não me faça perder mais tempo.
- Não tenho nada pra lhe dizer, nem haveria mesmo uma coisa
assim tão importante na vida de um simples homem de flores, não é?
A ironia era notória na voz do desconhecido. Decidiu tomar
outra abordagem. Largou-o e disse:
- Pois bem, então, tenha um bom dia...
- Pra você também Rodrigues.
- Me chamou de Rodrigues, esse não é meu...
- Tem certeza, florista? Acredita em tudo o que lhe
disseram, na vida que lhe impuseram?
- Você tem cinco minutos...
- Preciso de dois...
Ele ajeita sua roupa agora meio amarrotada enquanto
completa:
- Você nunca se perguntou o que está fazendo aqui? Quem são
as poucas pessoas que te cercam? Você é casado? Tem filhos? É normal um cara da
sua idade nunca ter se relacionado?
Você amoleceu, Rodrigues. Aceitou sua nova programação,
simplesmente permitiu lhe enfiarem esse lixo na sua cabeça.
Nunca se perguntou por que eles fizeram isso? Porque simplesmente
não te apagaram?
- Eles quem?
- Você tem as respostas dentro de si cara, não sou eu quem ira
te catequizar, ou te levar à luz da verdade. Encontre seu caminho sozinho, você
sempre foi bom nisso. Se quiser repostas procure, ou viva no silêncio, mas a
questão é: você consegue?
Estático só lembrou de se virar para ver onde o sujeito foi
alguns instantes depois, tempo suficiente para não achá-lo mais.
Sinalizou para seu funcionário fechar a loja de onde estava mesmo,
já que a vista ali era boa, o cara a usara bem.
Teria que sair dali. Queria pensar nessa porcaria que o sujeito
engomadinho lhe vomitara. Seguiu a pé para um lugar ao mesmo tempo público e
arborizado a ponto de não ser achado tão fácil: o Jardim Botânico!
Num ponto pra ele estratégico, onde conseguia ver quem
passava e não ser visto por ninguém, tentou fazer a porcaria da cabeça
funcionar. Quem era esse Rodrigues? Não
poderia ser ele!Por que esse cara simplesmente lhe seguiu? Desceu e procurou
espelho d’água ali perto, olhou em busca de alguém conhecido, mas como sempre,
quando se viu no reflexo apenas vislumbrou um estranho!
A chuva que começou agora desfigurou aquele rosto estranho
na água, e nada mudou em sua memória. Não se abrigou. Apenas seguiu seu caminho
num passo simples, deixando a chuva lavar seu corpo, como que se ela pudesse
exorcizá-lo de quem ele é... Na verdade, de quem ele era!
Decidiu fugir de seu destino, ou quem sabe, de seu passado.
Não tinha ninguém para avisar, deixou bilhete para o funcionário lhe dando
plenos poderes sobre a loja e, como se diz no Rio; meteu o pé!
Tinha uma boa grana guardada que nem sequer mexia, pois não
tinha com que gastar.
Decidiu ir pro interior mesmo, pareceu o melhor caminho,
longe de grandes centros urbanos. O eixo Rio - Sampa não poderia mais ser útil.
Quando no aeroporto apenas com pequena sacola de mão olhou em redor, não sentiu
saudade alguma daquele lugar. Num sabia se era dali, ou se viera de outro
estado, sabe lá de onde...
Direcionou-se ao seu avião certo que de agora em diante a
vida poderia ser diferente. Preferia que a dor e o zumbido ainda lhe seguissem,
melhor do que culpa, que o remorso.
Entregou o bilhete e o cartão de embarque à aeromoça e
seguiu para seu destino.
Ainda não sabia quem era, mas decidiu fazer seu rumo segundo
sua mente, seu pensamento. Jamais deixaria um fantasma qualquer lhe ditar
regras. Não sabia se essa era a coisa certa a fazer, afinal não poderia se
lembrar se era assim que agia em seus tempos passados, mas o passado já era, e
o céu agora cinzento desse inverno se abrira numa nova oportunidade.
Mas ele não está enganado quanto a absolutamente nada da
vida. Sabe que a qualquer momento a sorte pode mudar e se preparar para isso
será sua maior meta. Nunca mais será surpreendido por ninguém, seu destino
agora está em suas mãos.
Quem sabe por conta da positividade da cena, ele não nota homem branco, roupas finas e cabelo ajeitado que lhe olha enquanto segue seu destino. Se tudo será como antes? Depende do ponto de vista!
Quem sabe por conta da positividade da cena, ele não nota homem branco, roupas finas e cabelo ajeitado que lhe olha enquanto segue seu destino. Se tudo será como antes? Depende do ponto de vista!
Wendel Bernardes.
Amei!!
ResponderExcluirMaravilhoso texto...
Oi Carol... Muito grato, viu?
ResponderExcluirkkkk...
ResponderExcluirAuréio,tu é do cacique !!!
Q imaginação é essa, meu filho?
Então.... Num tem a história de 'se ouvir' da postagem anterior (Do Mar)...?
ResponderExcluirQuando escuto o silêncio, essas histórias me vêm à mente.
Sou igual ao menininho do filme "O Sexto Sentido"... kkk Eu ouço gente que 'não existe'... kkkkkkkkkk
Ai, ai...
Valeu, pessoa!