quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

O Medo do Abismo




Havia um som contínuo em sua cabeça, mesmo que não soubesse explicar que som era esse. Ele estava lá, martelando, soando, doendo mesmo. Ele sempre teve a impressão de que sua vida não lhe pertencia de verdade. Embora essa ideia fosse idiota de se comentar com as pessoas ao seu redor, mesmo aos poucos amigos que lhe restaram.

Começou a se arrumar para trabalhar. Pegava cedo, bem cedo. Precisava estar antes dos fornecedores chegarem. Quando o pequeno caminhão parou de frente a uma lojinha com portas e janelas de madeira trabalhados a mão, os que se arriscavam a olhar jurariam que tratava-se de uma marcenaria, mas as flores começaram a bailar num ritmo frenético.
Rosas de todos os tons, orquídeas, crisântemos, violetas... Cores afinal!

Depois de tudo estar devidamente em seus lugares ele simplesmente assina a guia que fica em seu poder e libera o cara da entrega. Não dá sorriso algum, mal responde a saudação de bom dia do trabalhador que lhe ajuda na loja.
Seco, duro, com feições quase que doloridas, mantém a ordem da vida que lhe foi imposta. Não consegue lembrar como começara tudo.
Quem comprou aquela loja? Quando decidiu ser florista? Justo florista!  

Estranhamente possuía um bom manejo do estilete e retirava espinhos como ninguém. Era tarefa fácil, e aparentemente a que mais lhe agradava. Quem sabe trabalhar só sem participação de ninguém, quem sabe simplesmente não seria por ferir a flor, por mutilá-la. Mesmo assim aquela função estava longe de lhe proporcionar alegria.

Depois de oito horas de trabalho ele simplesmente fecha a loja em sua rotina cíclica, veste o costumeiro casaco acinzentado de couro gasto e carcomido, ajeita algo parecido a um gorro em sua cabeça e acendendo um cigarro, some quase como que fugindo.

A dor seria sua única companheira não fosse o zumbido infernal. Chegou a pensar em consultar um especialista, porém como não conseguia confiar em ninguém seria um desperdício de tempo. Outra possibilidade de não se consultar vem do fato dele não poder ajudar muito ao doutor. Imagine só a sucessão de perguntas sem respostas. Não por conta de sua personalidade magnética, não dessa vez... Mas sim por causa da ausência de qualquer fato passado, a não ser por flashes desritmados, como que filmados por cinegrafista inexperiente, de um passado remoto... creio que da infância, quem sabe?

Pouco se olha no espelho, mas quando o faz nota cicatrizes em sua fronte, parecem cortes em forma de cruz, ou em xis, como queiram. Mas acerca disso nada sabe. Mas desconfia.

O medo de ser um monstro lhe aterroriza mais do que qualquer outra coisa. Mas procura não pensar nessa questão durante tanto tempo. Lembra meio que vagamente da frase de certo alemão que disse que quando se olha por tempo demais para um abismo, o abismo olha para dentro do observador.
O medo de receber piscada do abismo é muito grande. Então, decidiu viver ao acaso.
Mas as respostas não ficam alheias as perguntas durante muito tempo.

Certo dia, no meio de uma tarde de inverno, com pouquíssimo movimento quase sem flores à venda, percebeu que alguém lhe olhava. Estranhamente possuía a destreza de um bom observador e a perspicácia de poucos. Saiu pelos fundos, aproveitou o trânsito fluente do sinal aberto e como um fantasma atravessou a rua dando a volta por uma velha banca de jornais. Atrás dela surpreendeu homem cerca de 10 anos mais jovem que ele, vestido com bom gosto, cabelos curtos e jeito estranho. Parecia procurar algo; ou quem sabe alguém.

- Posso lhe ajudar?
O estranho se vira como que pronto a revidar um golpe
- Como você chegou aqui? Vejo que não perdeu o manejo da profissão!
- Sou florista, amigo, deve estar me confundindo com alguém, ou quem sabe estranhando minha ocupação.
- Então é verdade...
- Verdade?
- Que você não se lembra mais de nada.

Aquele papo estranho e meio furado estava tirando-o do sério. Decidiu encurtar à sua maneira. Agarrou o cara pela lapela e disse:
- Se você está aqui por que quer me dizer algo, desembucha rapaz, ou então não me faça perder mais tempo.
- Não tenho nada pra lhe dizer, nem haveria mesmo uma coisa assim tão importante na vida de um simples homem de flores, não é?
A ironia era notória na voz do desconhecido. Decidiu tomar outra abordagem. Largou-o e disse:

- Pois bem, então, tenha um bom dia...
- Pra você também Rodrigues.
- Me chamou de Rodrigues, esse não é meu...
- Tem certeza, florista? Acredita em tudo o que lhe disseram, na vida que lhe impuseram?
- Você tem cinco minutos...
- Preciso de dois...
Ele ajeita sua roupa agora meio amarrotada enquanto completa:
- Você nunca se perguntou o que está fazendo aqui? Quem são as poucas pessoas que te cercam? Você é casado? Tem filhos? É normal um cara da sua idade nunca ter se relacionado?
Você amoleceu, Rodrigues. Aceitou sua nova programação, simplesmente permitiu lhe enfiarem esse lixo na sua cabeça.
Nunca se perguntou por que eles fizeram isso? Porque simplesmente não te apagaram?
- Eles quem?
- Você tem as respostas dentro de si cara, não sou eu quem ira te catequizar, ou te levar à luz da verdade. Encontre seu caminho sozinho, você sempre foi bom nisso. Se quiser repostas procure, ou viva no silêncio, mas a questão é: você consegue?

Estático só lembrou de se virar para ver onde o sujeito foi alguns instantes depois, tempo suficiente para não achá-lo mais.
Sinalizou para seu funcionário fechar a loja de onde estava mesmo, já que a vista ali era boa, o cara a usara bem.

Teria que sair dali. Queria pensar nessa porcaria que o sujeito engomadinho lhe vomitara. Seguiu a pé para um lugar ao mesmo tempo público e arborizado a ponto de não ser achado tão fácil: o Jardim Botânico!

Num ponto pra ele estratégico, onde conseguia ver quem passava e não ser visto por ninguém, tentou fazer a porcaria da cabeça funcionar. Quem era esse Rodrigues?  Não poderia ser ele!Por que esse cara simplesmente lhe seguiu? Desceu e procurou espelho d’água ali perto, olhou em busca de alguém conhecido, mas como sempre, quando se viu no reflexo apenas vislumbrou um estranho!

A chuva que começou agora desfigurou aquele rosto estranho na água, e nada mudou em sua memória. Não se abrigou. Apenas seguiu seu caminho num passo simples, deixando a chuva lavar seu corpo, como que se ela pudesse exorcizá-lo de quem ele é... Na verdade, de quem ele era!

Decidiu fugir de seu destino, ou quem sabe, de seu passado. Não tinha ninguém para avisar, deixou bilhete para o funcionário lhe dando plenos poderes sobre a loja e, como se diz no Rio; meteu o pé!
Tinha uma boa grana guardada que nem sequer mexia, pois não tinha com que gastar.

Decidiu ir pro interior mesmo, pareceu o melhor caminho, longe de grandes centros urbanos. O eixo Rio - Sampa não poderia mais ser útil. Quando no aeroporto apenas com pequena sacola de mão olhou em redor, não sentiu saudade alguma daquele lugar. Num sabia se era dali, ou se viera de outro estado, sabe lá de onde...

Direcionou-se ao seu avião certo que de agora em diante a vida poderia ser diferente. Preferia que a dor e o zumbido ainda lhe seguissem, melhor do que culpa, que o remorso.

Entregou o bilhete e o cartão de embarque à aeromoça e seguiu para seu destino.
Ainda não sabia quem era, mas decidiu fazer seu rumo segundo sua mente, seu pensamento. Jamais deixaria um fantasma qualquer lhe ditar regras. Não sabia se essa era a coisa certa a fazer, afinal não poderia se lembrar se era assim que agia em seus tempos passados, mas o passado já era, e o céu agora cinzento desse inverno se abrira numa nova oportunidade.

Mas ele não está enganado quanto a absolutamente nada da vida. Sabe que a qualquer momento a sorte pode mudar e se preparar para isso será sua maior meta. Nunca mais será surpreendido por ninguém, seu destino agora está em suas mãos.

Quem sabe por conta da positividade da cena, ele não nota homem branco, roupas finas e cabelo ajeitado que lhe olha enquanto segue seu destino. Se tudo será como antes? Depende do ponto de vista!


Wendel Bernardes.

4 comentários:

  1. kkkk...
    Auréio,tu é do cacique !!!
    Q imaginação é essa, meu filho?

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  2. Então.... Num tem a história de 'se ouvir' da postagem anterior (Do Mar)...?

    Quando escuto o silêncio, essas histórias me vêm à mente.
    Sou igual ao menininho do filme "O Sexto Sentido"... kkk Eu ouço gente que 'não existe'... kkkkkkkkkk

    Ai, ai...
    Valeu, pessoa!

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