quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Valeu...




Corria na orla enquanto uma chuva fina caía em seu rosto. Não morava perto do mar, mas essa era sua rotina. Cruzava boa parte da cidade de transporte público só pra curtir esses momentos. Como vinha da Zona Oeste começava por São Conrado.

A vista linda, a espuma perfeita, o cheiro do mar... Nada poderia lhe fazer deixar de viver esses momentos. Aquela era a sua fuga, sua sala de análise, sua terapia. Nada do que poderia ouvir de um profissional de psicanálise lhe traria tanta paz quanto respirar aquele ar, endorfinar às vezes ao som do vento, às vezes tendo por companhia um classic rock que trazia em seu player.

Quem o vê de longe não sabe quantas dores seu corpo é capaz de suportar, quem o vê correndo nem sequer imagina os demônios que carrega consigo.

Aos 12 viu seu pai morrer pelas mãos de um velho amigo da família.
Era final de tarde e a música do pequeno rádio de pilha fazia fundo para a desgraça que seu ‘padrinho’ lhe causou. Três tiros no peito e seu único amigo se foi.

Sua mãe não bancou a sina de ter seu marido assassinado. Crime passional, diziam todos. Disseram pra ele que seu pai ‘amava demais’, era outro têrmo pra quem (como se diz no subúrbio) 'pula a cerca'. A pressão fez sua mãe fugir e lhe deixar como única vítima do descaso.
Pressão? Não seria vergonha??

Aos 12 anos virou homem. Foi criado por ele mesmo. Chegou a furtar pra matar a fome, cheirou cola pra simular calor. Tanta coisa lhe aconteceu até os 14... Quando tudo na vida dele rumava pra virar mais uma estatística, lhe viu chegar de manso um homem de meia idade, roupas modestas porém limpas e dignas.
Usava barba rala e nas mãos uma sacola plástica translúcida. Nem precisava abrir tudo pra saber o que tinha na sacola. O cheiro lhe socou o rosto: comida!
O homem chegou de manso como quem quer catar bicho fujão na rua e lhe deu a mão apresentando-se.
Nem ouvira nome ou coisa assim. Havia acabado de fumar um baseado e a fome de dias lhe foi potencializada à mil. Comeu como bicho fujão... afinal o senhor chegou do modo certo.

Algumas semanas se passaram nessa rotina agonizante até que ele perguntou:
- Quem é tu?
- Marcos... e você?
- Tu escolhe... muleque, pivete, vaporzinho, dimenor...
- Mas qual é seu nome de verdade?
- Pedro.
- Sabe o que significa o seu nome, cara? Quer dizer ‘pedra’, sabia?
- Devo ser pedra ‘mermo’...
- Mesmo!
- Oi?
- Se diz ‘mesmo’ com ‘s’...

Naquele bate papo informal depois de semanas de quentinhas e lanches, nasceu uma amizade incomum. Marcos era professor universitário, separado por duas vezes da mesma mulher. Nunca tivera filhos, sempre sonhou em tê-los.

Pedro, depois de algum tempo, ganhou mais que apenas comida pra matar a fome doida. Ganhou instrução, oportunidade, um teto, carinho e atenção.
Depois de uns anos, já com 16 pra 17 um dia perguntou ao seu salvador: “Posso te chamar de pai?”
Marcos jamais sentira tanta emoção. Aquela frase suplantou cada coisa por ter abrigado um pivete em casa. Foi chamado de louco por se intrometer... Disseram que os adotivos sempre vão embora ao final. Foi até acusado de pedofilia!
Seu coração era vazio de um filho, e a vida lhe trouxe um que buscava o amor de um pai.

Seus finais de semana eram à beira mar. Ali jogavam bola, comiam peixe na brasa, ouviram música nas rodinhas que se formavam nos luaus.
Mas Marcos também se foi. A vida permitiu que ele e Pedro caminhassem pouco, porém de forma intensa! Foi levado por sua saúde meio fraca. Quem sabe por conta das madrugadas perdidas ‘dormindo’ sobre os livros pra poder se formar.

Hoje mesmo sem seu pai do coração, a outrora pequena pedra agora feita em rocha, corre no lugar onde se sente mais à vontade pra matar a saudade e de certa forma agradecer àquele homem honesto e simples que com amor o fez vencer.

A chuva desse dia nem o incomoda mais. Nem mesmo a distância percorrida. Olha só, já estou no Leme, pensou! Está mesmo longe de onde começou a corrida. Longe mesmo foi onde chegou na caminhada que não deve acabar tão cedo.
Ele sorri de olhos quase cerrados e diz em palavras baixas:
“Valeu...PAI!”

Wendel Bernardes.


(Canção sugerida pro texto Meu Guri - Chico Buarque)

7 comentários:

  1. Aurélio, é baseado em fatos,né?
    Saudades....

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  2. Que lindo!!
    AMEI!

    Um abraço amigo, fica com DEUS...sempre.

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  3. Oi Ingrid....
    80% de meus textos é ficção... como esse!
    Abraços!

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  4. Oi Clélia...
    A Esperança na vida, dando sempre a mão é mesmo lindo!
    Que bom seria se histórias assim fossem frequentes...

    Abraços!

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  5. Tu é do cacique...kkk..
    Por isso que eu te admiro.
    bye.

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  6. Valeu Ingrid... Brigadão pelas palavras.... Mas deixa eu corrigir a infâmia do assassinato linguístico que cometi num comentário acima...
    '80% dos meus textos 'SÃO' ficção....'
    Fazer o que, né? É errando que se aprende!

    kkkkkkkkkkkkkk

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Aqui escreve-se sobre ficção, ou sobre fatos à luz da mente do escritor. Assim sendo, cada um deles pode ser tão real quando uma mente pode determinar.
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