Seu semblante era fechado, sisudo. Ele era mesmo alguém
grosso, ignorante e todos sabiam do azedume que lhe saborizava a vida.
Parecia o tipo de gente sem jeito. Passava por vizinhos e os
ignorava completamente. Os pouquíssimos que se aventuravam em lhe saudar, por
pura educação, ganhavam às vezes um sonoro rosnado, outras vezes apenas olhar gélido
de canto de olhos.
No trabalho era básico...
Basicamente estúpido com o porteiro, basicamente grosso com
a secretária, basicamente ‘equino’ com a auxiliar de serviços gerais. Do escritório
no qual trabalhava apenas era ‘ameno’ com o pessoal da pagadoria, por motivos óbvios
é claro!
Essa faceta de ‘homem de neanderthal’ afastava absolutamente
todos de seu convívio. Uma vez recebeu convite em mãos de um amigo de infância para
seu casamento que estava às portas. Defronte ao rapaz, sem a menor cerimônia,
bateu a porta na cara do desafortunado!
Um rapaz novo no trabalho, possuidor da inocência dos
desavisados, foi lhe convidar para um amigo-oculto de final de ano. Arregalou os
olhos quando de abrupto notou que rasgara o convite (feito com esmero no paint) e lançara os restos mortais do
mesmo contra as lentes de seus óculos. Até hoje o pobre desconfia que isso fora
pegadinha dalgum engraçadinho.
A família não lhe liga, não lhe manda flores, nem sequer
sinal de fumaça... visitar que é bom, nem pensar! Alias, outro dia um primo o
viu vindo em sua direção próximo da orla, rapidamente arriscou a própria vida
roletando entre a ciclovia e a pista principal, apressando o passo e fingindo
ler algo importantíssimo no smartphone.
Pra garantir, desceu os óculos escuros para sacramentar o ar ‘nem te vi’!
Surgiu assunto no trabalho tempo desses. O tema na fila do
cafezinho era a vida privada de tão singela figura.
Casado? Jamais! Se alguma tola fosse pega nessa rede
desavisada já o teria abandonado faz eras (glaciais)!!!
Gosto musical? Certamente peças de Chopin, Wagner ou
Brahms... Jamais o suingue de um Villa-Lobos, claro que não!! E mesmo assim
ainda sobre o assunto ‘música’ acertaram que ouvia por dia no máximo uns 15 minutinhos,
pois nada poderia agradá-lo por tanto tempo.
Será que acertaram?
Ele chega a seu prédio exausto, o trânsito caótico do Centro
à São Conrado o deixou tenso (como de costume). Na garagem do prédio antigo,
deixa seu sedã na velha vaga, toma o elevador vazio ouvindo um trecho de um
bolero instrumental que insiste em tocar pelo sistema de som do pequeno prédio.
Abre porta clássica de madeira quase negra, entalhada a mão e
a cerra bem, como que prendendo atrás de si um mundo que o queria engolir, ou
mesmo trancafiando uma fera louca, vai saber...
Já em seu apartamento amplo e claro, com decoração clean,
deixa seus pesados sapatos negros num canto onde está o mesmo aparador que
descansa sua valise, suas chaves, e celular (com o qual ninguém se comunicava).
Ligou o stereo e a
bossa nova encheu o ambiente. Trocou de roupa ao som de ‘Desafinado’ enquanto
punha água no pequeno regador para hidratar suas orquídeas raras, dignas de
exposição no Jardim Botânico.
Ao final de sua apaixonada tarefa religiosa, dirige-se ao
fogão onde prepara suculento cannelloni com massa caseira e molho aos quatro
queijos durante uma lenta e deliciosa degustação de um perfumado bordô!
Abre a janela e o som do violão de João Gilberto amalgama-se
aos ruídos das brumas e de solitário passarinho que encerra essa sinfonia empoleirado
num flamboyant em frente da entrada de ar.
Quem sabe ele é tão avesso a tudo apenas por saudade de sua
solidão perfeita?
Ou ainda é a maneira que achou para esconder sua faceta
gentil e sensível da selva de pedra em que vive (e que, diga-se de passagem; não
perdoa ninguém...)?
Ou a realidade crua é que ele simplesmente veste a pele
dessa figura sisuda - quase má - aos desavisados, e é domado pelo prazer da
companhia de ninguém e apenas suaviza-se quando mergulha em seu mundo irreal e utópico.
Ou será essa sua verdadeira face, sua realidade?
Perguntas quem sabe sem respostas...
Quem sabe já respondidas!
Perguntas quem sabe sem respostas...
Quem sabe já respondidas!
Wendel Bernardes.
(Música mais que sugerida)