sexta-feira, 5 de outubro de 2012

O Samba da Vida de Nice.




Nice era mulata formosa, daquelas que paravam quaisquer pagodes. Era carioquíssima da gema e da casca do ovo, como gostava de dizer ostentando um sorriso de perolado perfeito.

Conseguiu muitas de suas belas curvas nos sobe-e-desce das ladeiras das favelas. Isso mesmo; favelas no plural! Sua família honesta e temente a Deus, como dizia vó Maria, se mudava toda vez que o ‘bicho pegava’ na favela que viviam. 

Então era começar tudo de novo; invadir o lote, cercar o terreno, arrumar madeira pro barraco, ‘chamar na mão’ com o martelo...
Era uma família matriarcal, sua vó Maria e sua mãe Joana, só conheceram homem na hora do ‘bem bom’ como diziam, depois estavam sozinhas na vida, sambando pra não cair. Mas quem disse que Nice se abalava? Cantava sempre um refrão positivo dum partido alto e lá ia agarrar a vida à unha!

Ela fazia de tudo um pouco; faxineira, manicure, arrumadeira, passadeira, etc., mas seu divertimento estava em frequentar a quadra da escola preferida nos ensaios técnicos da bateria. Seu coração parecia explodir ao som dos surdos e tamborins. Era verdadeiro frenesi.

Mas quer saber? Nice tinha dúvidas se a vida era apenas isso. Às vezes, quando chegava de um dia de trabalho, ou mesmo do samba, depois de driblar os barbados louquinhos por um pouquinho mais de seu molejo, deitava sua cabeça no travesseiro de retalhos que vovó fizera e contemplava a majestade do céu estrelado do alto do morro pela fenda duma telha. Aquela mesma que fazia jorrar água nas chuvas de verão (e de inverno também, né?), mas agora a fenda fazia-lhe viajar no infinito enquanto se perguntava quem teria composto essa samba de céu estrelado. Foi talvez a primeira vez que Nice perguntou-se realmente sobre Deus.

Semanas depois, durante mais uma das faltas d’água que assolava a favela, sambando com vasilhames como adereço de cabeça nas vielas, passou num beco e ouviu alguém cantando uma canção que não era um samba, mas que com a mesma alegria falava das maravilhas da criação e de como Deus as fizera, uma a uma...

Pôs de lado a pesada lata d’água e não se fez de rogada, cariocamente bateu palmas e gritou: “Ô de casa!”
Então uma velhinha, mais acabadinha que sua vó Maria lhe saudou com um sorriso meio desdentado, porém franco e sincero.
- Bom dia minha filha, disse a velhinha.
Nice foi direto ao ponto;
- Eu ouvi uma música que falava da natureza, e de como Deus fez tudo nela... a senhora...
- Seu eu canto? Perguntou satisfeita a velhinha.
- Na verdade eu já cantei minha filha, isso que faço hoje é mais um sussurro que canto... e riu de si mesma.
Mais uma vez, de forma direta disse Nice:
- Na verdade quis saber se a senhora é... crente!?
O sorriso da velhinha transformou-se numa gostosa gargalhada vinda da alma e disse:
- Sou crente sim, minha filha, mas já me chamaram também de ‘bíblia’, ‘beata’ e até de coisa muito pior, disse meio corada de vergonha.
-É que eu estava pensando Nele esses dias. Foi Ele mesmo quem criou o mundo? A mim ou a senhora?
- Foi Ele sim, minha linda, Ele me criou, fez a natureza e desenhou você e cada beleza de seu corpo e de seu coração.

Até então Nice não havia imaginado dessa forma, criada pelas mãos de Deus, isso daria um samba-enredo, pensou.
- A qual igreja a senhora pertence? Perguntou já meio sedenta doutra água que sua lata não poderia carregar.
- Sou de Jesus minha linda, mas quando minha pernas fracas permitem, congrego naquela igrejinha azul, perto da Biquinha.
Claro que Nice conhecia a tal Biquinha, afinal a falta d’água no morro num dava tréguas e era de lá que essa moça tirava água, da famosa Biquinha que nada mais era do que um ‘gato’ no encanamento público que servia à comunidade na hora do sufoco.

Decidiu deixar o pagode desse domingo pra conhecer mais do Deus compositor do samba mais belo que já havia sido composto: a vida!
Chegando lá, depois de se arrumar muito bem com seus breguetes como se fora ao ensaio técnico, sentou na frente pra procurar sua amiga, curiosamente não a encontrou.

Embora não conhecesse nadica de nada, achou linda aquela cantoria toda e o pastor falava, segundo ela, igual político que visitava o morro em época de eleição. Sentiu-se honrada de estar ali, principalmente, pois os ‘irmãos’ não a olharam como um pedaço de carne, como os caras do samba a olhavam.

Sem pensar duas vezes, levou seu molejo a frente do altar na hora do ‘apelo’, e chorou muito ao ‘aceitar Jesus’, pelo menos foi isso que o pastor disse que fizera ao ir lá na  frente. Nice gostou.
Seu coração sincero batia ainda mais forte que cada bumbo da bateria da agremiação que frequentava...
Aliás, frequentava mesmo!
Deixou de sambar, parou de ir à quadra da escola. Agora sua rotina era ir aos cultos da igrejinha azul da Biquinha.

Aos poucos largou também seu molejo, suas roupas coloridas foram trocadas por vestidões retos e de cores sóbrias, sem decotes e lascas, como dizia o pastor, andando como ‘convém a uma serva do Senhor’.

Seu sorrisão perolado foi virando agora simples saudação com a cabeça. Os barbados que a seguiam nas ladeiras louvando a Deus por seu rebolado já não a perseguiam mais. Parecia que a igrejinha azul da biquinha ganhara mais uma fiel, mas que o morro perdera muito em não ver aquela alegria desfilando em suas vielas.

Tempos depois, Nice passou com sua lata na cabeça em frente a casa da velhinha que não vira mais. Havia ainda lá uma janela aberta onde uma senhora, bem mais jovem que a velhinha, lhe explicou que Dona Selmira, havia ido cantar seus louvores mais perto de Deus.
Nice entristeceu-se e contou àquela senhora, que julgou ser filha da velhinha, de seu encontro com a doçura que recebera dela.

A senhora com olhos lacrimejantes disse:
“-Então é você?”
Tirou de dentro dum bibelô papelzinho dobradinho várias vezes, meio mal escrito dizendo:
“Mulatinha, nunca deixe de encontrar o Criador em seu coração, é lá que mora tanto Ele, quanto a alegria que Ele mesmo te deu ao nascer!”
Agora eram duas a chorar!
Nice entendeu o recado.

Havia encontrado o maior Tesouro do mundo, mas perdera a alegria e o desejo de manifestar quem Ele é no sorriso sincero que sempre carregara.
Deu uma guinada na vida e percebeu, mesmo com respeito e devoção, que achar o Criador não era perder o que Ele criara!

Hoje em dia Nice samba em louvor ao Senhor que lhe criou e lhe deu vida, e sabe que em seu coração há um bem maior que tudo que o mundo pode dar.
Seu sorrisão está mais brilhante do que nunca, e agora quando olha pras estrelas na mesma fenda do barraco, sabe de onde vem seu ‘brilho interior’, sua alegria, sua paixão pela vida.
Vem do Criador!

Moral da história:
A religião engessa as curvas e o molejo alegre que Deus criou, mas o contato com Ele, liberta de tudo!

Wendel Bernardes.



 (Texto postado originalmente no Café Com Leite Crente e no Conexão da Graça).

5 comentários:

  1. Aurélio, passei por aqui...kk..fiz o meu trabalho de supervisão, heim...kkkk...
    Muito bem, o Blog ta em dia...kkk...
    Ai de vc se me chamar de encosto...kkk..

    ResponderExcluir
  2. "Supervisionar?"

    Às vezes me sinto num Big Brother... Se o Bial aparecer na minha televisão nem vou me espantar!
    kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk

    Muito bem!

    Bom dia, Bial!

    ResponderExcluir
  3. Ué, quem não gosta de invasão, não escreve em Blog...hahahahha...
    E vc faz brilhantemente!

    ResponderExcluir
  4. "É preciso saber viver..." kkkk.....

    ResponderExcluir

Aqui escreve-se sobre ficção, ou sobre fatos à luz da mente do escritor. Assim sendo, cada um deles pode ser tão real quando uma mente pode determinar.
Seus comentários serão bem vindos se não forem ofensivos.