Uma lança se ergue enquanto garras monstruosas incidem
contra o adversário. Brados e urros mesclam-se ao som do aço rasgando a pele...
Mas nem sempre é assim.
Moscou – 1973.
O frio toma as ruas numa nevasca furiosa e hostil. As almas sãs
estão agora completamente agasalhadas sentindo o crepitar da chama alta na
lareira. Mas Piotr segue seu rumo completamente solitário na missão que
outorgou a si mesmo.
Saiu da casa quente e confortável num bairro bem situado
para dar algum tipo de auxílio aos abandonados à margem da sociedade, num subúrbio
qualquer onde filosofia e política perdem a voz.
Lá o frio é ainda mais cruel já que a pobreza impede a
manutenção de um sistema decente de aquecimento – que é alias indispensável nessa
parte do mundo. Famílias costumam até queimar seus móveis e objetos inflamáveis
na esperança, ás vezes vã, de fazer a chama viva por mais um tempo.
Sempre com uma palavra amiga e um sorriso, Piotr leva sempre
o que pode. Agasalhos, comida e vez ou outra até ajuda a obter lenha. Quando pode,
leva ele mesmo em sua caminhonete, adquirida justamente visando a coletividade
que o governo diz manter.
Porém, gestos apaixonados do piedoso homem de meia idade,
embora bem vindo a cada pobre que ajudou, não é bem visto por alguns. E estes
em particular, têm o poder de mudar essa realidade de uma forma inimaginável.
Piotr chega ao seu destino imbuído de fé, coragem e compaixão,
mal sabendo o que lhe aguarda.
É uma noite estranha essa - pensa ele - já que não é assim tão
tarde e as luzes estão apagadas. Nesse horário sempre há alguém disposto a
receber auxílio, e uns poucos outros a ajudar na mão de obra, ainda mais ajudar
a alguém que já é amigo dessa comunidade.
Ele bate nas portas, chama, assovia sem obter resposta.
Tenta então noutra casa, e noutra, e noutra, porém a mesma
cena se repete. Só ecos de seus próprios ruídos são audíveis.
Até que figura sombria lhe aparece do nada, trajando
sobretudo negro, chapéu de aba e estranho sorriso enigmático.
-Assustou-se, amigo?
-Desculpe, na verdade
sim... Estava fazendo tanto barulho na esperança de ser ouvido que nem ouvi sua
chegada na neve.
Nesse momento se vira e quando olha no redor do estranho,
percebe que a neve em seu entorno está intacta. Sem pegada alguma ou rastro
qualquer que indicasse de onde teria vindo estranha figura.
-Não se preocupe,
estou acostumado com a reação de todos em relação a mim... Noite fria para um
passeio, não?!
-Na verdade vim ajudar
alguns amigos, o senhor também não é daqui, não é?
-Absolutamente meu
amigo, sou daqui sim. Percorro essas
paragens há tanto tempo que me acostumei a ver geração após geração declinar,
uns sob a vida dura das ameaças da vida do homem simples, outros simplesmente
perderem-se nas trevas... É um homem religioso, amigo?
-Não me considero
assim exatamente, apenas sigo meus instintos e alguns bons costumes. Alguém
disse certa vez, que a maior religião seria ajudar aos necessitados. De certa
forma é o que faço, mas não é apenas uma obra de fé, mas sim, de compaixão!
Perdoa-me, acho que
devo ir já que não posso ajudar ninguém hoje, vou fugir desse frio... Uma boa
noite!
-Ah, mas poderia me
ajudar então?
-Ajudar? Sim... No que
posso lhe ser útil?
-Simplesmente me dando
uma carona...
-Ah, claro, entre...
O sujeito com ar de desdém empurra os donativos não usados
nessa noite e ajeita-se como pode na caminhonete.
-Mas pra onde o senhor
vai mesmo, se posso lhe perguntar...?
-Em breve você saberá,
apenas dirija meu caro.
A petulância do estranho lhe incomodava, mas aceitou tudo
como parte do que lhe cabia para aquela noite. Tinha realmente um coração nobre
esse Piotr!
Cerca de vinte minutos de estrada, com pouca neve que insistiu
em precipitar, o sujeito lhe apontou casa grande, com ares aristocráticos, porém
visivelmente atingida pelo tempo.
-Ali, por favor.
-Estranho... eu passo
aqui faz algum tempo e nunca notei essa casa.
-Não há nada de
estranho nisso, notamos apenas o que queremos ver nos cenários em que vivemos. Tudo
obra da subjetividade.
Ele decide se calar diante dessa declaração. Manobra seu
carro e diz:
-Pronto.
-Por que não entra e
me faz companhia num chá, café ou algo mais forte?
-Sinto muito, mas...
-Creio que devo
insistir, meu caro Piotr.
Ele se espanta que a figura lhe saiba o nome e por conta
disso o segue até a velha mansão. Não sabia se fora apenas curiosidade ou algo
mais lhe impulsionara, mas obedeceu a ordem quase como se precisasse disso
-Aqui é sempre mais quente.
-... Como sabe meu
nome?
-Sei muito mais do que
apenas seu nome, caminhante!
-De que me chamou?
-Aquiete-se. Sei de
sua compaixão amenizando a dor desses desgraçados, de sua fé no homem, na sua
esperança de um mundo melhor, essas bobagens todas... Você é sectário demais! É
por conta disso que vim pessoalmente acabar com sua cumplicidade com o ‘bem’,
humano!
Dito isso, o homem já estranho, agora se revela na frente de
Piotr. A cena sui generis dura instantes
e logo diante dele está, no lugar do fidalgo, criatura com mais de dois metros
seguramente, pele acinzentada, cabelos ralos, olhos esbugalhados, garras acentuadas
porém, mantém estranhamente o sorriso soturno e sínico de sempre.
-Meu Deus, o que é
isso?
-Não tente fugir,
caminhante. O que agora paralisa seu corpo inútil não é apenas o medo. Sinta meu
poder agindo em você.
Piotr não consegue mesmo se mexer, e sente agora dor aguda
no seu cérebro e ao mesmo tempo, algo faz que seu sangue ferva nas veias. A dor
é tão desconhecida quanto indescritível.
-Meu Deus, me ajude...!!!
-Cale-se boçal... Seu
destino está traçado e sua morte é certa... Levarei sua alma comigo para o
inferno!
Nesse momento ouve-se terceira voz que se revela dizendo;
-Como você pode dar
por certo algo que nem mesmo teve fim, demônio?
-Quem está aí? Revele-se,
eu ordeno!!!
Das sombras de uma ante-sala surge ser iluminado, trajando
vestes simples, rosto de homem comum, cabelos curtos, expressão firme, barba
rala e um belo par de asas pálidas...
-Você não pode se
intrometer aqui, Hyllel, ele é uma vítima limpa!
-Demônio, desde a
queda sua visão do que é limpo ou sujo foi de fato comprometida. Largue o
controle da mente do caminhante... Já!
Dizendo isso, o guerreiro alado ergue o braço em direção aos
dois e uma guerra invisível tem inicio. O demônio, visivelmente fraquejado com
a aparição angelical, começa a expressar ares de dor e de súbito, solta um
grito aterrador enquanto é obrigado a largar o controle mental que matinha em Piotr.
Caída e humilhada a criatura volta a ter uma aparência humana...
-O que está fazendo
aqui, guerreiro de luz? O tratado me dá plenos direitos de explorar essa gente.
-Um tratado firmado entre um ex-governante delirante diante
de sua figura assombrosa? Ora, com quem você pensa que está lidando, Kallore? Não
sou um dos seus para cair na sua lábia suja, e estou aqui atendendo a prece do caminhante.
O anjo dotado de uma autoridade ímpar prossegue em sua
sentença.
-Você bem sabe que
diferentemente de meus irmãos eu não preciso de lâmina espiritual para lhe
destruir, demônio.
-Ora... É vaidade que
noto em sua afirmação Hyllel?
-Eu não uso poder senão
o que me fora dado, criatura profana. Não use seus engodos para ludibriar a
mente de Piotr mais uma vez. Deixe já esse lugar!
-Essa casa, é minha!
-Nada aqui pertence a você,
criatura insana... Suma!
O brado de Hyllel cria um vórtice quase imperceptível a olho
nu, porém as emanações são sentidas facilmente em todo o ambiente e até Piotr,
pasmo com toda a cena surreal, sente forte compressão no peito. Quando procura
por seu agressor nada mais encontra.
Ele tenta erguer-se e conta com a ajuda de Hyllel para tal.
-Segure meu braço,
caminhante.
-Porque me chamaram
assim?
-Simples você está
trilhando pelo Caminho, não é mesmo? Mas, duvido que esta seja sua única pergunta, estou
certo?
Apenas o olhar do homem responde a retórica do anjo.
-Bem, você agora está
ciente que existe um mundo onde coisas sobrenaturais acontecem...
-Isso é incrível!
-Incrível é ter alguém
que por pura compaixão, simplesmente abdica de seu conforto pondo sua própria vida
em risco apara ajudar ao próximo. Por isso me ordenaram em seu auxílio. Você é
o verdadeiro anjo salvador aqui.
Piotr observa as asas lindas e vastas do guerreiro de
estatura mediana se dobrarem e sumirem em sua frente, tornando o anjo num homem
de aparência costumeira, normal.
-Ainda há muito a
fazer. Duas guerras distintas estão se formando, Piotr. Uma você já escolheu seu lado quando decidiu
ajudar a esses pobres coitados, e por conta disso alguns serão postos a lhe
ajudar..
-Será incrível, mas e
a outra guerra?
O ser místico, agora agindo como homem qualquer estende o
braço, descansando-o no ombro de Piotr e prossegue:
-A outra guerra, meu
amigo, já dura uma eternidade, e nesses dias que virão terei muitos
compromissos.
-Em quê?Se posso
perguntar, claro...!?
-Proteger você e os
que estarão por despertar pro trabalho das hostes que Kallore irá convocar!
-Não entendi porque não
o derrotou, entende?
-Está me perguntando por
que não o matei?
-Sim..
-Embora seja um
guerreiro, apenas cumpro ordens e o demônio será peça fundamental para o plano
que se desenrola. Mas tudo correrá bem, agora você sabe que sempre houve um
Alguém em seu auxílio, não?
-Na verdade, nunca
duvidei.
O anjo sorri confiante que agora ganhou um aliado a sua
altura.
A manhã começa a despontar no horizonte gélido, Piotr agora
mais cônscio de sua missão e das implicações que ela trará retorna para sua
caminhonete e quando procura por Hyllel, vê ainda mais duas silhuetas ao longo
da colina ao lado da mansão.
A batalha não pode parar enquanto houver justificados em perigo. Cada guerreiro
sabe que as armas diversas são eficazes nessa peleja e que a prece tem um poder
certeiro em seus efeitos.
Mas, onde será próxima etapa da batalha?
Wendel Bernardes.