segunda-feira, 20 de maio de 2013

Eles Estão Entre Nós... O Poderoso Auriel.



Fileiras se perfilam. Há tambores que roubam o som dos trovões. A ira no olhar do inimigo, por mais notória e significativa, não faz com que nenhum guerreiro sequer sinta medo. A ferocidade da batalha apenas cerca o vencedor.

Europa – Século XVI D.C.

Os ventos trazem boas novas. São ainda pequenas, porém importantes mudanças no mundo. Embora os impérios surjam cada vez mais ferozes, aqueles que se sentem livres, levam sua liberdade a sério!
Ele é um simples lavrador. Anos a fio buscando o sustento dos seus. Luta para sobreviver com as sobras do que planta, afinal o melhor de seu trabalho acaba mesmo nas mesas dos poderosos. Seja nalgum palácio, seja num mosteiro rico.

Seu velho pai, mesmo igualmente pobre, ensinou-lhe coisas preciosas; ler, escrever e... pensar!! Assim, possuidor de parcos recursos, mas de espírito nobre, ele se opõe em seu coração a todas as corrupções vigentes em sua época. E não são poucas.


Ouviu-se em determinada corte os gritos dum clérigo poderoso, que de tão preocupado com os rumos (dos cofres) de sua religião, esbravejava aos quatro ventos, maldições indizíveis até mesmo a um camponês, um bucaneiro, ou até um guarda de infantaria.
Seus planos seriam postos em prática antes que ventos reformistas sequer atravessassem as fronteiras do reino. E ele sabia que o ‘bom exemplo’ deve ser aplicado onde mais pode possuir eficácia; nas classes mais baixas!

Embora triste com os rumos da fé, ele une os seus em prece. Inicialmente esposa e filhos lhe servem de congregação, mas pouco depois amigos e vizinhos lhes fazem companhia. Na pequena vila todos conheciam a piedade e o zelo do homem simples ao falar de coisas importantes descritas nas Escrituras Santas, que ele mesmo traduziu e leu a cada um que sedento lhe pediu.
Possuíam uma estranha ligação, como sagrada simbiose, ou comunhão fraterna. Não havia entre eles mais pobre, ou remediado. Cada homem exatamente igual ao seu semelhante.

Porém, o mal assume formas com contornos belos mascarando-se de bem, simulando piedade. O clérigo, sabedor da filosofia que partilhava tudo na pequena vila, adiantou-se e mandou prender o pobre homem, inicialmente ‘apenas para uma lição’, mostrando assim sua ‘benevolência e misericórdia’.
Mas o pobre homem, não desistiu de sua liberdade. Assimilou seu flagelo, e mais uma vez gozando de sua ‘liberdade’ pôs-se a fazer o que sempre fizera, ou seja, continuou a comungar das palavras santas, mas por consciência, dispensou os que não seriam do lar, achando assim que geraria menos dor e mal aos seus semelhantes. 

Cônscio dessa nova realidade o clérigo, imbuído de inveja, ou quem sabe ainda de sentimento mais nocivo, não iria deixar de demonstrar seu poder e toda a ira por ter sido menosprezado por tão simples figura. O poder da coroa e da fé não poderiam ser zombados assim, principalmente pela rebeldia de um camponês!

Acordou num susto como da outra vez, só que agora os guardas com lanças em punho notadamente não possuem a mesma motivação de antes. As tochas que possuíam nas mãos não pareciam ser apenas para iluminar o caminho na noite fria.
A brutalidade torna-se a bandeira e as desconfianças confirmam-se. Enquanto ele é levado cativo, amarrado pelas mãos atado a um cavalo, olha para trás e contempla sua choupana arder, iluminando a madrugada, confirmando o horror da força do opressor.

As feridas múltiplas, principalmente as internas o fazem ceder e seus olhos cerram-se como que buscando esquecer-se de tudo. Acorda atado a um poste. A escuridão e o cheiro indescritível confirmam que está numa masmorra, desta vez, ainda mais sinistra que a anterior.
Assim que seus olhos acostumam-se com a falta de luz, percebe coisa estranha e inimaginável até para a mais fértil das mentes provincianas.
São olhos! Acesos, vermelhos como fogo e mergulhados no mal. Ele apenas sente um frio que percorre sua espinha e numa tentativa natural tenta tranquilizar seu coração, até que ouve rosnados, e em meio destes uma voz ainda mais terrível e indescritível.

-O que fará agora, caminhante? Seu Deus abandonou-o junto de sua liberdade...
Ele apenas tenta localizar, sem sucesso, o locutor dessa sentença.
-Eu sinto seu medo e não é sem razão, sua morte está próxima!
Sombras o circundam e nesse momento ele percebe o terror que pinta o contorno de cada criatura, certamente, nenhuma delas conhecidas pelo homem, ou pelo menos não catalogadas.
Ele ensaia uma prece entregando seu espírito e quem sabe, pedindo a Deus que morrer nas mãos desses monstros não seja seu destino.
Subitamente, algo realmente inesperado acontece.
Uma luz assustadoramente intensa enche o ambiente outrora mergulhado em trevas. E surge ele! Alto, negro, de roupas tribais, longas asas alvas e uma cintilante espada nas mãos.
-Ninguém toca no caminhante!
-Auriel, murmuraram os demônios...
-Eu disse ninguém, ouviram?
-Ora Auriel, irá libertá-lo?
-Minha missão não lhe diz respeito, cão!
-Fiquem calmos, ele não pode contra todos nós, sugere um deles protegido pelas sombras restantes.
-Quer apostar?
Silêncio profundo.

O guerreiro decide não mais aguardar e vibra seu aço místico por cima de sua cabeça e abre suas asas como que protegendo o pobre flagelado. O brado que solta faz metade dos demônios recuarem, a outra metade não recua por um único motivo; falta de tempo hábil. Foram absolutamente todos atingidos, partidos ao meio, estripados, mutilados...
A voz outrora horripilante, agora sem confiança alguma, profere a seguinte promessa antes de sumir nas sombras:
-Haverá outra oportunidade, guerreiro...
-Vou aguardá-la ansioso, demônio!
Sumiram... fugiram agindo covardemente, como sempre.

-Você veio me soltar? Sussurra o camponês numa mistura de alívio e espanto.
-Sinto, amigo... mas não.
-E o que veio fazer?
-Lhe proteger de perecer nas mãos deles, mas não posso livrá-lo de seu destino, porém, lhe trago boas novas.
-Novas?
-Há um levante na fé, seu exemplo de amor e caridade contaminou a outras, em breve esses campos estarão prontos para a seara, entende?
-Embora nunca tenha pretendido ser um exemplo, entendo perfeitamente...
-E não é tudo..
-Sim?
-Trago dois recados para você de seu Mestre.
-E...?
-Sua esposa e filhos estão em seus braços e felizes por sua atitude.
Ele não profere palavra, mas as lágrimas que correm como riachos em seu rosto traz a mensagem de alegria que explode em seu coração!
-E o outro recado?
-Seu lugar, amigo... Também está reservado e seu Mestre sente saudades suas.
Foi o único sorriso que ele usará pelo resto da vida.

Auriel continua de guarda o resto daquela noite. Não exatamente por acreditar que os demônios irão voltar, na verdade ele sabe que o ‘recado’ a eles já foi dado. Ele permanece em companhia, por solidariedade e vê que a exemplo de outros mártires, o camponês canta canções alegres mesmo depois do susto e do medo.
Ele sabe que quando a manhã despertar, sentirá a maior dor física que jamais sonhara, porém ao menos, seu espírito estará livre!

Em outro lugar, um farfalhar faz fundo ao som do aço místico cortando carne pútrida. A guerra jamais termina. Onde agirão da próxima vez?

Wendel Bernardes.










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