Fileiras se perfilam. Há tambores que roubam o som dos
trovões. A ira no olhar do inimigo, por mais notória e significativa, não faz
com que nenhum guerreiro sequer sinta medo. A ferocidade da batalha apenas cerca
o vencedor.
Europa – Século XVI
D.C.
Os ventos trazem boas novas. São ainda pequenas, porém
importantes mudanças no mundo. Embora os impérios surjam cada vez mais ferozes,
aqueles que se sentem livres, levam sua liberdade a sério!
Ele é um simples lavrador. Anos a fio buscando o sustento
dos seus. Luta para sobreviver com as sobras do que planta, afinal o melhor de
seu trabalho acaba mesmo nas mesas dos poderosos. Seja nalgum palácio, seja
num mosteiro rico.
Seu velho pai, mesmo igualmente pobre, ensinou-lhe coisas
preciosas; ler, escrever e... pensar!! Assim, possuidor de parcos recursos, mas
de espírito nobre, ele se opõe em seu coração a todas as corrupções vigentes em
sua época. E não são poucas.
Ouviu-se em determinada corte os gritos dum clérigo poderoso,
que de tão preocupado com os rumos (dos cofres) de sua religião, esbravejava
aos quatro ventos, maldições indizíveis até mesmo a um camponês, um bucaneiro,
ou até um guarda de infantaria.
Seus planos seriam postos em prática antes que ventos
reformistas sequer atravessassem as fronteiras do reino. E ele sabia que o ‘bom
exemplo’ deve ser aplicado onde mais pode possuir eficácia; nas classes mais
baixas!
Embora triste com os rumos da fé, ele une os seus em prece. Inicialmente
esposa e filhos lhe servem de congregação, mas pouco depois amigos e vizinhos
lhes fazem companhia. Na pequena vila todos conheciam a piedade e o zelo do
homem simples ao falar de coisas importantes descritas nas Escrituras Santas,
que ele mesmo traduziu e leu a cada um que sedento lhe pediu.
Possuíam uma estranha ligação, como sagrada simbiose, ou
comunhão fraterna. Não havia entre eles mais pobre, ou remediado. Cada homem
exatamente igual ao seu semelhante.
Porém, o mal assume formas com contornos belos mascarando-se
de bem, simulando piedade. O clérigo, sabedor da filosofia que partilhava tudo
na pequena vila, adiantou-se e mandou prender o pobre homem, inicialmente
‘apenas para uma lição’, mostrando assim sua ‘benevolência e misericórdia’.
Mas o pobre homem, não desistiu de sua liberdade. Assimilou
seu flagelo, e mais uma vez gozando de sua ‘liberdade’ pôs-se a fazer o que
sempre fizera, ou seja, continuou a comungar das palavras santas, mas por
consciência, dispensou os que não seriam do lar, achando assim que geraria
menos dor e mal aos seus semelhantes.
Cônscio dessa nova realidade o clérigo, imbuído de inveja,
ou quem sabe ainda de sentimento mais nocivo, não iria deixar de demonstrar seu
poder e toda a ira por ter sido menosprezado por tão simples figura. O poder da
coroa e da fé não poderiam ser zombados assim, principalmente pela rebeldia de
um camponês!
Acordou num susto como da outra vez, só que agora os guardas
com lanças em punho notadamente não possuem a mesma motivação de antes. As
tochas que possuíam nas mãos não pareciam ser apenas para iluminar o caminho na
noite fria.
A brutalidade torna-se a bandeira e as desconfianças
confirmam-se. Enquanto ele é levado cativo, amarrado pelas mãos atado a um
cavalo, olha para trás e contempla sua choupana arder, iluminando a madrugada,
confirmando o horror da força do opressor.
As feridas múltiplas, principalmente as internas o fazem
ceder e seus olhos cerram-se como que buscando esquecer-se de tudo. Acorda
atado a um poste. A escuridão e o cheiro indescritível confirmam que está numa
masmorra, desta vez, ainda mais sinistra que a anterior.
Assim que seus olhos acostumam-se com a falta de luz,
percebe coisa estranha e inimaginável até para a mais fértil das mentes
provincianas.
São olhos! Acesos, vermelhos como fogo e mergulhados no mal.
Ele apenas sente um frio que percorre sua espinha e numa tentativa natural
tenta tranquilizar seu coração, até que ouve rosnados, e em meio destes uma voz
ainda mais terrível e indescritível.
-O que fará agora, caminhante? Seu Deus abandonou-o junto de
sua liberdade...
Ele apenas tenta localizar, sem sucesso, o locutor dessa
sentença.
-Eu sinto seu medo e não é sem razão, sua morte está
próxima!
Sombras o circundam e nesse momento ele percebe o terror que
pinta o contorno de cada criatura, certamente, nenhuma delas conhecidas pelo
homem, ou pelo menos não catalogadas.
Ele ensaia uma prece entregando seu espírito e quem sabe,
pedindo a Deus que morrer nas mãos desses monstros não seja seu destino.
Subitamente, algo realmente inesperado acontece.
Uma luz assustadoramente intensa enche o ambiente outrora
mergulhado em trevas. E
surge ele! Alto, negro, de roupas tribais, longas asas alvas e uma cintilante
espada nas mãos.
-Ninguém toca no caminhante!
-Auriel, murmuraram os demônios...
-Eu disse ninguém, ouviram?
-Ora Auriel, irá libertá-lo?
-Minha missão não lhe diz respeito, cão!
-Fiquem calmos, ele não pode contra todos nós, sugere um
deles protegido pelas sombras restantes.
-Quer apostar?
Silêncio profundo.
O guerreiro decide não mais aguardar e vibra seu aço místico
por cima de sua cabeça e abre suas asas como que protegendo o pobre flagelado. O
brado que solta faz metade dos demônios recuarem, a outra metade não recua por
um único motivo; falta de tempo hábil. Foram absolutamente todos atingidos,
partidos ao meio, estripados, mutilados...
A voz outrora horripilante, agora sem confiança alguma,
profere a seguinte promessa antes de sumir nas sombras:
-Haverá outra oportunidade, guerreiro...
-Vou aguardá-la ansioso, demônio!
Sumiram... fugiram agindo covardemente, como sempre.
-Você veio me soltar? Sussurra o camponês numa mistura de
alívio e espanto.
-Sinto, amigo... mas não.
-E o que veio fazer?
-Lhe proteger de perecer nas mãos deles, mas não posso
livrá-lo de seu destino, porém, lhe trago boas novas.
-Novas?
-Há um levante na fé, seu exemplo de amor e caridade
contaminou a outras, em breve esses campos estarão prontos para a seara,
entende?
-Embora nunca tenha pretendido ser um exemplo, entendo perfeitamente...
-E não é tudo..
-Sim?
-Trago dois recados para você de seu Mestre.
-E...?
-Sua esposa e filhos estão em seus braços e felizes por sua
atitude.
Ele não profere palavra, mas as lágrimas que correm como riachos
em seu rosto traz a mensagem de alegria que explode em seu coração!
-E o outro recado?
-Seu lugar, amigo... Também está reservado e seu Mestre
sente saudades suas.
Foi o único sorriso que ele usará pelo resto da vida.
Auriel continua de guarda o resto daquela noite. Não exatamente
por acreditar que os demônios irão voltar, na verdade ele sabe que o ‘recado’ a
eles já foi dado. Ele permanece em companhia, por solidariedade e vê que a
exemplo de outros mártires, o camponês canta canções alegres mesmo depois do
susto e do medo.
Ele sabe que quando a manhã despertar, sentirá a maior dor física
que jamais sonhara, porém ao menos, seu espírito estará livre!
Em outro lugar, um farfalhar faz fundo ao som do aço místico
cortando carne pútrida. A guerra jamais termina. Onde agirão da próxima vez?
Wendel Bernardes.
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