sábado, 25 de agosto de 2012

Nildinho, um Bicho Solto na Vida.



Evanildo dos Santos da Silva. Esse era seu nome de registro. Mas ninguém o chamava assim. Sua falecida mãe o tratava de Nildinho, mas na favela ele era o Bicho Solto!

Acostumou-se a correr nas vielas sujas e largadas pelo poder público. Soltava pipa e por elas se arriscava nas lajes a vida toda. Futebol? Bem, ele mesmo dizia que era craque, mas largou a bola por uma pistola quando mesmo ainda criança foi forçado a dar de cara com a realidade dura do morro.

Sua mãe morrera dum ataque fulminante de coração. Parece que ela tentou chamar a vizinha pra ajudar a lhe acudir, mas seus gritos foram abafados pelos tiroteios constantes do morro. Afinal, quem iria se atrever a sair do barraco em noite de invasão da facção rival?
Morreu ali, sem ninguém que a ajudasse sequer a tentar vaga na UPA que construíram no pé do morro.

Nildinho se virou sozinho.
Costumava dizer, enquanto gesticulava com uma pistola 756 na mão, que seu pai fora um 38 e sua mãe uma escopeta.

Loucuras a parte, a vida dele não fora mesmo nada mole.
Roubou comida pra sobreviver e tomou ‘piau’* na favela por isso. Pois é, na lei da favela morrer de fome pode. Roubar gente da comunidade não!

Depois de furtar comida e apanhar por isso, decidiu roubar gente que, segundo ele, tinha mais a oferecer. Assaltou ônibus da Zona Sul, van pra Zona Norte e trem pra Baixada.
Generalizou a vida e fez dela um crime só. Só que a vida não era ‘crime passional’, porque paixão, Bicho Solto nunca teve.

Aos poucos começou a ser ‘respeitado’ na favela. Como não respeitar alguém que portava uma arma e agia violentamente contra tudo e contra todos?
Aliás, contra tudo mesmo! Seu primeiro homicídio foi cometido contra um crente que lhe disse que ‘Jesus é Amor!’
- ‘Amor? Amor é o cac#t#!’
Deu três tiros na cara do ‘irmão’ e o pôs pra cantar mais cedo no coral do céu.
- ‘Num queria Deus? Então... foi morar com Ele, ué!’

Pra entrar pro tráfico foi um pulo. O respeito de Bicho Solto entre a bandidagem cresceu. Ele passou de ‘comédia’* pra ‘sujeito homem’* sem mesmo esvaziar o pente da arma. Apenas três tiros.

Foi ‘avião’, ‘fogueteiro’, ‘soldado’ *, e muita gente caiu até se tornar o ‘frente’* da boca mais rentável da favela. Aquela que ficava perto da ‘pista’, onde havia fluidez de trânsito e que a polícia não conseguia perseguir, apreender drogas, ou mesmo prender quem quer que fosse, dado ao caos rodoviário que fluía pra Zona Sul, ou por causa do medo de adentrar na ‘comunidade’ pra pegar os ‘vagabundos’ como são chamados.

Seja por um motivo, ou por outro, Bicho Solto era certamente o ego dominante na bipolaridade de Evanildo. Era cada vez mais ‘band’* e cada vez menos aquele moleque que curtia soltar pipas na laje.

Poucos anos se passaram e muitas guerras se formaram na vida de Bicho Solto. Guerras em todos os sentidos. Trocou tiro com a polícia, com bandido de outras facções e com os ‘traíras’* de seu próprio ‘bonde*’.
Levou tiro de todos os calibres, sobreviveu porque vaso ruim não quebra.

Mas a maior guerra que esse homem travou sempre foi consigo mesmo. Nunca se perdoara por não estar em casa pra socorrer sua mãe. Justo nesse dia foi conferir o vídeo game que o amigo de pelada da viela de trás ‘comprara na pista’*
Logo naquele dia rolou tiro na favela.

Odiava os PMs por fazerem (as raras) incursões na comunidade.
Odiava a facção rival por tentar tomar incansavelmente o morro.
Odiava os vizinhos por não fazerem nada pela mãe moribunda.
Odiava a si mesmo por ter sido apenas uma criança tentando ter uma infância no meio da selva de concreto!

Quando pensava nisso lhe subia algo ruim que eclodia de dentro de sua alma atormentada. Nesses tempos, agia mais violentamente que o normal. Normal? Que significado possui essa palavra no vocabulário de alguém com um drama desses no currículo?

Certo filósofo que vivera na Itália uns quinhentos anos atrás, dizia que um líder deve ser truculento tanto quanto precise, mas que deve fazê-lo com seus inimigos em função dum ‘bem maior’, porem amar a sua terra e sua gente. Pois quem não o fizesse, ganharia o medo e conseqüentemente o ódio dos seus.

Não se sabe se foi o medo, ou o ódio que gerou a rusga e a ‘trairagem*’ no seu bonde, mas alguém ‘deu*’ pra polícia tudo ‘tim-tim-por-tim-tim’ de sua vida. Onde se escondia, com quantas armas estava e o dia que estaria vulnerável.

Foi assim que a ‘casa caiu’* pro Bicho Solto. Sua prisão foi anunciada na TV. O delegado fez questão de chamar a imprensa pra fazer quantas matérias quisesse sobre o fato. O representante do departamento de segurança deu uma declaração que ‘o Rio poderia dormir mais tranqüilo com sua prisão’.

Evanildo nem acreditou quando ganhou esse status de inimigo público número um.
Ficou importante de uma hora pra outra, e agora não era importante só na favela. Pela primeira vez deu um ‘graças a Deus’ quando imaginou que sua mãe morrera antes de vê-lo assim.
Arrependimento? Não... remorso!
Por que foi ‘dar mole’ pra ser pego pela ‘justa’* assim?

Transferido dias depois para um presídio num certo lugar da Zona Oeste, quente demais pra pronunciar em público, começou sua vida, agora sob a tutela do Estado.
Horários pra tudo, liberdade para nada!

Ironicamente, foi lá que conhecera Celinho, agora irmão Marcelo, ex-band que se converteu pra ‘crença’ no xilindró! Compartilhavam a cela (junto de mais uns trinta e cinco caras, claro). Agora Bicho Solto ouvira falar de Deus. E da pior forma possível. Trancafiado e desarmado!

Era tanto Deus aqui, tanto Deus ali que sua mente, já pouco sadia enlouqueceu de vez. Decidira virar crente!
Ganhou uma bíblia enorme, passou a usar roupas temáticas e falar gírias que os crentes usam. Era ‘fogo puro’ pra cá, ‘aleluias’ pra lá, e entre uma gíria gospel e outra sempre rolava um ‘glória a Deus’.

Estranhamente o agora irmão Evanildo, estava mais calmo, mas não menos confuso por dentro. Embora sua intenção fosse das melhores, seu mentor Celinho (ops, irmão Marcelo), não poderia lhe explicar o porquê seu vazio não lhe deixava.

Numa noite sem sono, regada a muito suor do calor de Bangu (Ih, pronunciei...), abriu sua bíblia gigante num texto que dizia mais ou menos assim: ‘Conheça a Verdade, e ela lhe libertará!’
Verdade? Liberdade? Como posso ser livre mesmo dentro dessa masmorra? Como posso ser livre mesmo depois de ser quem fui, ou mesmo quem ainda sou?

O texto bíblico parece lhe confundiu mais que lhe salvou! Horas depois, num sonho, um rapazote meio magricela de barba rala e não mais alto que ele mesmo, lhe apareceu com um sorriso perturbadoramente franco e lhe disse com voz suave e sotaque engraçado:
‘A Verdade não é uma história, mas é uma pessoa. ’
Sonho mais doido! Verdade é uma pessoa? Quem é essa Verdade?
Irmão Marcelo saberia ajudar?

Num estalo digno de qualquer arma automática, Evanildo se atinou que essa pessoa só poderia ser A Pessoa! JESUS! Aprendeu com o tempo de sobra que teve, e por trancos e barrancos que passou na cadeia, que a cura não vem com mais revoltas ou ainda com religiões estigmatizadas, ela vem do cerne de Alguém que é maior do que tudo!

Hoje leva sua vida ansiando por sair e ver a rua de novo, mas sem armas na cintura nem ódio no coração. Sabe muito bem que vai levar muitas surras de tudo e todos, afinal foi só o que plantou na vida, mas agora existe uma força incomensurável que o impele a prosseguir.

Claro que não sabe como a vida o levará, mas ouviu dizer nalgum lugar que ‘com Cristo no barco, tudo vai bem!’

Wendel Bernardes.



* Glossário da Favela Carioca:
Piau – Surra.  ‘Lição’ dada por meio de força a alguém por ser julgado culpado de erro ou crime.
Comédia – Sujeito sem credibilidade, paspalho.
Sujeito homem – Cidadão com respeito e determinada ‘moral’ entre certo grupo
Avião – Office Boy do tráfico.
Fogueteiro – membro da facção que manipula fogos de artifício para sinalizar a invasão dos domínios pela polícia ou por outra facção. Também pode fazer uso dos fogos para sinalizar a chagada de drogas ou pessoas importantes pro tráfico.
Soldado- guerrilheiro da facção.
Frente – Líder de uma determinada fração da facção, ou chefe do poder paralelo. Responsável por liderar tanto a facção, quanto a própria comunidade dominada.
Band – Bandido.
Traíra – traidor da causa.
Bonde – Grupo social.
Comprar na pista – Adquirir produto de furto ou roubo
Deu – Relatar fato a outrem.
A Casa Caiu – Acabar com planos, subjugar.
Justa ou Dona Justa - Polícia

2 comentários:

  1. Cristo em nós a esperança !!!

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  2. Todos os dias existem encontros únicos.... lendários pra quem os tem... Essa é a nossa esperença!
    Que venham mais encontros!

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