segunda-feira, 20 de agosto de 2012

João (Sua História e Volta Por Cima)



Acordou cedo e lavou o rosto com água que juntou da chuva de ontem da calha da igreja de crente que desemboca no seu quintal, diga-se de passagem, a única coisa que já ganhou de lá. Deu um salto da cama velha e disse: ‘Deus ajuda a quem cedo madruga!’

Era manhã de sábado e não podia ‘dar mole’ ou a vida lhe cobraria duro depois. Ele sabe bem como é ter ‘fartura’. ‘Fartava’ pão, leite, arroz feijão... E ria com isso como todo bom brazuca!

Tinha que ganhar a vida empurrando seu carrinho pra rodar a cidade em busca de papelão, latinhas de bebida, garrafas pet, fios de cobre, etc. Qualquer coisa que desse uma grana e que fosse refugo. Faz mais de dez anos que vive assim...

Quando empurrou o portão enferrujado que dá acesso ao casebre em que mora, sorriu pra gente bonita e saudável que estava na calçada... Eram os jovens que saíram da vigília de louvores da igreja dos crentes, a mesma da calha do quintal. Tocaram bateria freneticamente a madrugada toda, e é claro que atrapalhou o sono, mas não reclamou nem se aborreceu. Ficou colhendo frases que lhe servissem entre uma cantoria ou outra, entre um aleluia e um amém... Assim passou a noite com os crentes, mesmo não estando lá de corpo presente.

Os jovens da calçada até lhe devolveram o sorriso, mas isso soou mais como um deboche do que uma saudação cordial. Nem deu bola praquilo, o dia tava só começando e muita gente iria ainda caçoar dele, claro que não era exclusividade da moçada gospel.

Enquanto empurrava seu “burro-sem-rabo” (modo como se chama o carrinho puxado por gente aqui no subúrbio do Rio), andava preocupado para não esbarrar nalgum carro na calçada, coisa de carioca que estaciona em qualquer lugar crendo que o mundo nasceu pra ser seu (literalmente).

Lembrou sem querer (ou não) que faz mais de oito anos que vive só. Veio à mente o sorriso lindo da filhinha e de como ele a achava bela, muito parecida com a mãe. Mãe essa que um dia, ainda como sua esposa, cansada da pobreza extrema e de viver de sobras, catou sua filha e foi tentar a vida noutro lugar. Ou noutros braços pra ser mais exato.

Ele não a julga, pelo menos sua filha tem um teto, comida na mesa e não tem um farrapo humano como o pai pra freqüentar as reuniões escolares. Isso também não o aborrece, continua a empurrar a vida catando cada refugo.

Só agora, com as luzes multicoloridas se deu conta que era época de natal. Era tão distraído pra essas coisas que nem o cara de vermelho cantando ho, ho, ho na esquina do comércio lhe fizera cair a ficha. A culpa de ter se apercebido da época, foi mesmo das luzes de natal.
Cintilantes, luminescentes, incessantes.

Percebeu também tardiamente que já era noite. É que o brilho fugaz dos piscadores lhe roubara tempo precioso, mas não faz mal, ganhou alegria de ver belezinhas piscantes a lhe fazer esquecer-se da vida dura, pelo menos, por alguns instantes.

Ao voltar, passou em frente dum centro espiritualista denominado Luz Divina, que mantinha em sua entrada jovem senhora que lhe chamou para dois dedos de prosa e lhe argüiu coisa aqui e ali, enquanto lhe oferecera sopa cheirosa e grossa. Junta da sopa oferecera a jovem senhora também ajuda para redirecioná-lo na vida.

- O senhor faz o quê?
- Cato lixo e revendo o que dá!
- E antes?
- Era porteiro.
- Parou por quê?
- Parei nada... Me pararam. Perdi o emprego e não consegui nova colocação ‘no mercado’ como dizem. Ao dizer isso abriu sorriso simples, mas franco.
Com sorriso similar a jovem senhora lhe perguntou:
- O senhor acredita que existem forças trabalhando em seu favor?
- Perfeitamente... Respondeu ele, acredito que Deus é essa força!
- Pois então passe aqui amanhã, de banho tomado, barba feita e seus documentos em ordem e verei o que posso lhe dar de presente de natal.
Ele ficou curioso. Imaginou na sua ingenuidade que deveria ser presente muito fino já que merecia banho e cara lisa. Mas obedeceu!

- Bom dia, lhe saudou senhor de meia idade com roupas bem passadas e perfume discreto.
- Dia; respondeu!
- Então é o senhor o candidato à vaga de portaria?
- Sou? Respondeu sem jeito.
- Deve ser, é o que diz sua ficha, e com sua experiência, pelo menos por mim, o senhor já está contratado!

Ele nunca acreditara nessas ‘bobiças’ de milagre de natal... Mas seu presente veio mesmo, e sem laçarote vermelho e dourado!

Era dia bonito de sol de verão quando João, quase um sem nome, arrumado com sua nova roupa de porteiro, atravessou a rua para o seu segundo dia de trabalho na portaria do condomínio uns 5Km de sua casa. Ia a pé mesmo, pois estava acostumado a rodar a cidade e andar muito mais.
Só que desta feita João não se sente mais aquele farrapo humano, um sem rosto e sem nome na multidão. Ele caminha feliz e orgulhoso de sua nova condição.

Agora João é gente de novo, se sentiu renovado, revigorado e já sonha em reformar seu cantinho e quem sabe um dia, chamar sua filhinha pra passar um final de semana digno com ele. Seja natal, páscoa, carnaval, festa junina... Dia dos pais!

O que agora faz diferença é que a vida lhe recomeçou com esperança.
Hoje olha em seu espelhinho de hastes laranja e ouve o ressoar da pergunta da jovem senhora:
“O senhor acredita em forças trabalhando a seu favor?”
Que pergunta mais boba, pensou... Acredito e sei que Ele ajuda a quem cedo madruga.
Seu caminho foi redirecionado, e por Quem mais seria, senão por Ele?

Wendel Bernardes.




2 comentários:

  1. Então...

    Veja a amarga ironia e a reincidente realidade, pois de, 'crente', ele só conseguia água suja e sorriso condescendente.

    O vento sopra onde quer...

    ResponderExcluir

Aqui escreve-se sobre ficção, ou sobre fatos à luz da mente do escritor. Assim sendo, cada um deles pode ser tão real quando uma mente pode determinar.
Seus comentários serão bem vindos se não forem ofensivos.