Não se ouve mais o som de trombetas de guerra, os tambores
emudeceram. As bandeiras tremulantes estão a meio-mastro. A tristeza se faz
lágrima até entre os eternos.
Rio de Janeiro – Século XX.
Samba, flores tropicais, praias maravilhosas e boa comida.
Ele sempre acreditou que isso fosse mesmo pra ‘inglês ver’. Nunca teve tempo de
ficar ‘de papo pro ar’ como se diz por aqui. Nasceu na classe operária e caía
na luta tudo dia pra tentar ser alguém na vida.
Tudo andava bem na sua caminhada, afinal a batalha pra
romper fazia parte de um todo. Era um cara sóbrio, e dificilmente ficava viajando
nas idéias; pé no chão mesmo. Só sonhava quando o assunto era montar uma
família. Aí sim, ele idealizava uma esposa amável e compreensiva. E com ela
teria tantos filhos quantos pudessem bancar.
Carlos era mesmo gente boa, um cara ‘do bem’ como adoram
dizer hoje em dia (como se alguém se declarasse ‘do mal’, pode?).
Sua mãe, uma senhora respeitadíssima na comunidade, era a
responsável pela criação desse mulato de quase trinta. Mulher digna e honesta,
apenas ‘errou’ quando escolhera o traste do pai do Carlinhos. Esse sumiu na
poeira depois da notícia da gravidez. Porém criou o moleque com honra, respeito
e um amor incomensurável. Nunca se esqueceu de lhe mostrar o caminho da fé, e
de certa forma, sempre soube que seria um homem importante. E não é que era
mesmo?
Carlos era funcionário de uma super construtora, que
potencializava seus trabalhos com a grande iniciativa de crescimento imobiliário
por conta dos programas habitacionais nacionais. Dizia que ‘subir na vida’ por
enquanto, era levar o carrinho de tijolos até o vigésimo andar, ainda em término
e sem elevador. Era um piadista!
No trabalho, mais ou menos uns três anos antes, conhecera
Arata. Rapaz de origem oriental e estatura mediana, mas com cara de brazuca,
queimado de sol de tanta labuta até lembrava um pouco nossos índios.
Era gente boa toda vida. Tinha por Arata certa simpatia até
o dia em que tudo aconteceu.
Era final do mês e Carlos estava por demais preocupado. As
contas não batiam e já sabia que teria de entrar no tal do cheque-especial pra poder
fechar o período e bancar as dívidas, todas já no vermelho.
Talvez por conta dessa loucura toda não poderia notar a parede se
descolar e vir a toda na sua direção desde o terceiro andar da obra. Estaríamos
falando agora de sua morte se Arata não tivesse surgido como um raio pra lhe
puxar com agilidade e força de um gigante.
Daí em diante a amizade nasceu fraterna, como verdadeiros
irmãos separados na maternidade. Onde um estava, estava lá o outro. Em certos
momentos pareciam pai e filho também, mesmo sem muita disparidade de idade aparente.
Simplesmente eram um pro outro o que se precisava para o momento de ambos, e vida
assim foi.
Hoje Carlos se lembra com carinho da conversa que tiveram
tempos atrás na hora do almoço no trabalho.
-Aí, cara...
-Fala...
-Já se pegou pensando alguma vez se você nasceu com algum
‘destino maior’?
Arata fitou-o com olhar único.
-Todos os dias, meu velho. Mas me conta aí; o que se passa
na sua cabeça?
-Sei lá cara, pode ser bobagem minha, mas creio que algo
precisa mudar na minha vida, sabe? É como se do nada, eu começasse a pensar
numa direção, como minha mãe sempre disse; como é mesmo?
-Um propósito!?
-Isso!
-Quem sabe o seu propósito seja encaminhar pessoas na vida,
mano?!
-Como um orientador de escola, ou coisa assim?
-Na verdade, pensei nalgo parecido como um ‘irmão mais
velho’ pra alguns, tipo isso.
-Mas em quê? Ajudar na profissão?
-Pode até ser, mas imaginei coisa mais abrangente.
Arata põe-se a falar como que preparado há séculos para
aquele exato momento. Sem ser prolixo, explica seu precioso ponto de vista.
Sem saber, absorto na conversa, Carlos é observado por
criatura que o contempla como que o estudando. Só que seu foco não é apenas em
Carlos e suas dúvidas existenciais. Seu alvo principal é Arata!
Passaram tempo demais conversando e notaram o quanto estavam
atrasados para voltar ao trampo. No final do trabalho andaram juntos até a
plataforma do metrô. Carlos entra e Arata se vira na estação quase vazia. Era
tarde, já que estavam numa obra acelerada, faziam serão. Já estava quase na hora de
fechar o metrô.
O clima estranho demais faz Arata entender que aquilo se
tratava de um ambiente possuído pelo mal. Olha mais ao fundo e percebe vir em
sua direção um ser obviamente espiritual, do alto de mais de dois metros
certamente, e ao se aproximar, nota que suas vestes parecem-se mais com roupas
de bárbaro.
Arata se espanta com a ousadia do demônio em aparecer
‘revelado’ assim naquele ambiente, mas não se amedronta.
Numa voz macabra falando como numa tediosa melodia aguda, o ser
pergunta:
-Preparado para seu destino, arauto?
-Meu destino nunca esteve em suas mãos, Ottar!
Ouve-se uma gargalhada animalesca e os pouquíssimos presentes,
mesmo sem ver nada, fogem por puro medo do desconhecido.
Ottar ergue uma besta e dispara sua seta mortal, porém o
alvo desta vez não é Arata, mas sim o painel de força que se encontra um pouco
atrás do pequeno arauto.
-Agora estamos no meu ambiente, pequenino; as trevas!
-A escuridão nunca me assustou, potestade. Você sabe muito
bem como me adapto aos ambientes.
-Por pouco tempo pequeno guerreiro, por pouco tempo!
Dito isto, o covarde gigante convoca seus asseclas. Demônios
de várias classes aos pares. Contavam na verdade, dezenas deles.
O pequeno com feições orientais, com um brado, libera seu
par de asas cinzentas.
-Ah, o arauto volta às suas feições de anjo, não é “Arata”?
-Me chame de Lebiel, infiel!
Nesse exato instante, cada fera mística cai sobre o
guerreiro com ferocidade ímpar. Ele se protege como pode. Garras e dentes
pontiagudos rasgam sua carne, seu sangue jorra de forma alucinada. Se tivesse
em mãos seu aço místico a luta atingiria outro patamar, mas tudo isso faz parte
do plano covarde de Ottar. Enfrentar alguém 'despreparado' aumenta as certezas da vitória.
Socos, chutes, giros velozes, golpes de asas.... Ele luta
com bravura inigualável e cada demônio, antes confiante da vitoria, percebe a
honra que há no pequeno guerreiro que luta de mãos limpas. Porém ele sabe que não
resistirá por muito tempo sem uma arma, ainda que improvisada.
Um a um, ele derruba cada demônio com esforço hercúleo. O adestrado
guerreiro faz uso da cada utensílio que aparece em sua frente. Todos, tornam-se
armas letais! E assim ele pouco a pouco logra êxito, até restar apenas...
-Ottar... Agora somos apenas eu e você!
A potestade sai das sombras, enquanto desfila sua cara
desfigurada com voz nasalizada e com tom doentio:
-Tem certeza, ser inferior? Suas forças estão minadas pela luta
destemida que conduziu, ou será que suas forças se foram por conta da vida ‘fácil’
que possui como arauto, vivendo escondido entre os caminhantes? Admira-me não
ter sido morto pelos demônios inferiores...
O guerreiro angelical se ergue mesmo com feridas
lancinantes, e lhe fita com olhar irado, apenas digno dos mais bravos:
-Me explique demônio, como um ser eterno pode ficar
enfraquecido em poucos anos como arauto, se lutou milhares de anos como
guerreiro?
Não me desonre com seus artifícios mentais, porco!
Eles se encaram, se medem, se estudam, até que Ottar inicia
sua tentativa de frustrar os sonhos do Ser maior.
A luta é animalesca. Ambos são guerreiros eficientes e farão
de tudo para a defesa de suas respectivas missões. Eles arriscarão a própria existência
se preciso for.
A batalha épica já dura horas num balé amedrontador e duro. Ambos,
obviamente cansados, querem terminar logo com isso, porém Lebiel sabe que a paciência
precisa ser exercitada contra um demônio tão descabido como Ottar.
O anjo conta que em algum momento ele confiará em sua força
e estatura e fará algo errado.
Mas, inexplicavelmente o guerreiro alado sabe que de alguma
forma, o sujo tem alguma razão. Ele se sente enferrujado, exausto.
E desarmado de seu aço místico, sabe que apenas um milagre o
fará vencer esse gigante demoníaco.
Olha para o céu e balbucia por ajuda em prece. Mas antes que miríades
despenquem do céu em seu auxilio, Ottar aproveita a distração e atravessa o
pequeno anjo com uma cimitarra negra sobrenatural! Ele não grita, mas a dor que sente só
poderia ser suplantada pela vergonha....
Ottar sabe que deve se recolher logo. Matar um anjo possui implicâncias
seríssimas e conseqüências mortais. Mas antes, ouve a voz sibilante de Lebiel
que diz com leve sorriso:
-Você perdeu demônio burro! Com minha morte, dezenas dos
meus irmãos ainda mais poderosos que eu, virão em sua caça. Os planos do Eterno
se cumprirão mesmo em minha morte!
O demônio se agacha, furta seu aço negro do moribundo
guerreiro e parte da mesma forma que surge; covardemente!
Há um hino de dor no ar quando os anjos chegam a tardio
reforço. Eles choram, lamentam e fazem promessas de vingança diante do corpo do
irmão ainda quente. Até que um deles, Agniel, se voluntaria para estar no lugar
de ‘Arata’ na vida de Carlos.
-A obra de meu irmão não será em vão! Viva os sonhos do
Eterno!!!
Erguem suas armas e bradam ao anjo morto.
É domingo de manhã quando rapaz alto e magro bate a porta de
Carlos.
-Bom dia...
-Sim?
-Vim te trazer noticia triste, amigo. É sobre Arata...
-Ele...?
-Sim, infelizmente nosso amigo partiu.
-Como aconteceu?
-Não é tão importante agora, Carlos, mas saiba que tinha
grande apreço por você e que seu desejo certamente era ver cumprido em ti, seu
destino, o propósito que vocês conversaram tanto.
Ele se vira, e com um semi-sorriso se despede, porém o rapaz
mantém a sensação que o verá de novo. Mas muitas perguntas movem seu pensar. E quanto a conversa
com Arata, como ele poderia saber de tudo?
Parece que realmente existe entre céu e terra mais coisa do
que imagina sua pequena filosofia.
Carlos fecha a porta, abre o coração e pergunta a Deus o que
virá? A resposta em seu coração diz que apenas Ele realmente sabe. Embora essa
perda aponte para uma derrota, a guerra haverá de continuar. Onde será da próxima
vez?
Wendel Bernardes.