Cansado demais, apenas queria deitar-se em sua cama mal
feita e dormir profundamente.
O quarto escuro e frio o faz lembrar de pensamentos que o
remetem ao passado recente. De alguma forma faz uma prece, pedindo que algo
mude seu destino.
Depois de algum tempo de pensamentos correlatos é vencido
pelo cansaço.
Seus sonhos são puro drama, quem sabe mimetizados por sua
própria psiquê doentia ou por conta de coisas que fizera. O silêncio do
ambiente o faz ir ainda mais profundo em seu labirinto pessoal, quem sabe
buscando encontrar algo perdido, quem sabe tentando ver-se vencido nos braços
de minotauro qualquer...
De súbito, ainda que embevecido pela droga de Morfeu, sente
alguém adentrar, ou simplesmente surgir em sua proximidade. Os níveis de sono
são rapidamente vencidos até que abre seus olhos agora acostumados
à escuridão, procurando pela fonte de tal situação até que:
- Boa noite, ou devo dizer bom dia? Sabe, eu nunca consigo
me decidir qual a saudação certa...
- Meu Deus!!!
- Ah, sim... É uma confusão bastante comum, meu amigo.
Alguém aparece do nada em seu quarto na madrugada e logo é associado com Deus,
ou com algum de seus auxiliares... Quero deixar bem claro que não sou Ele, nem
associado a Ele em qualquer esfera!
- Então você é...
- Você não está me ouvindo, amigo?... Disse que não estou
associado com Ele em nenhuma esfera, entendeu? Isso quer dizer que não sou esse
aí que você pensou... Ora, veja!
- Então quem é você? O que faz aqui? Aliás, como entrou
aqui?
- Ahhhhhh.... O delicioso sabor das perguntas certas.
Ele vaga em meio à penumbra até que, quase deslizando,
senta-se como um lord na ponta da
cama de casal com agora um dono apenas.
- Sou alguém que seu entendimento um tanto curto não irá
assimilar muito bem meu caro...
- Como assim?
- Viu? Como eu disse – concluiu ironicamente.
Repentinamente o rosto do estranho se ilumina numa luz tênue
que poderia ser ainda mais sutil que pequena chama.
- Sou um discípulo – deveras aplicado, eu diria – do tempo
como um todo.
- Isso quer dizer que...
- Que tenho em minhas mãos, caro jovem, o poder de singrar
dimensões. Presente, futuro e passado não me são fatos lineares e inacessíveis como a vocês. Isso quer dizer, que posso acessar exatamente qualquer
ponto do tempo... Não é maravilhoso?
- Qualquer ponto?
- Sim, desde que seja, digamos; nos últimos cinco mil
anos...
- Inacreditável!
- Eu sei meu jovem, para seres como você é completamente
inadmissível minha realidade, mas...
- Prove...!
Ele lhe sorri com expressão enigmática enquanto apenas ergue
a mão esquerda onde faz revelar estranho anel dourado com ranhuras e lapidações
que lembram símbolos místicos, certamente.
E qual surpresa se deu quando o quarto escuro simplesmente
tornou-se uma bela varanda em madeira de lei. Redes fixadas nas colunas de
jacarandá e cheiro de café fresco e bolo de laranja....
- Essa casa é...
- Sim, da sua adorável e falecida avó... Continue olhando,
meu amigo.
A porta lateral se abre revelando duas conhecidas figuras.
Uma de cabelos grisalhos cortados na altura da nuca, brincos de pérolas,
grandes olhos negros e forte sorriso convidativo.
- Vovó – ele diz boquiaberto.
A outra; menino de calças curtas, cabelo desgrenhado, olhos
azuis e bem magrinho. Dessa vez sua já fraca voz se cala diante de sua própria
figura na infância. Os cheiros, os sons, a presença dela... Tudo é real, ele
sabe muito bem.
E no exato momento em que suas descrenças desaparecem, ele
volta ao quarto no mesmo ponto de partida.
- Vejo que nutre uma fé positiva agora, não é mesmo?
- Você provou apenas o que é, e o que possui como dom,
mas não explicou o que quer aqui e comigo.
O ser enigmático se energiza com as perguntas de seu
companheiro, e agora de pé, passa a descrever:
- Sou um de poucos seres possuidores do poder de fazer almas
tristes como você, meu amigo, voltarem a desfrutar de novo da alegria da vida
plenamente.
Ele continua a falar, mas agora fita friamente os olhos do
jovem.
- Não é preciso o dom que tenho, para saber que sua vida
está lançada na dor e amargura de um recente cisma. Sua cama feita para dois,
abriga apenas um. Seu olhar perdido procura por alguém que ‘o tempo levou’...
- De fato, mas o que você pretende?
- Pretendo lhe trazer a cura, que tal?
- Cura?
- Sim, lhe presentearei com um poder especial... O poder
pelo qual cada homem ou mulher desse planeta hipócrita mataria. O poder em que
poetas e filósofos, doentes de angústia, basearam suas mais complexas teorias e
poemas.
- Qual poder?
- O poder de voltar atrás... Imagine poder voltar até certo
ponto do tempo em que o gesto certo poderia mudar tudo? Trocar seu destino,
mexer na sua vida!
- Não é possível!
- Seria dúvida ou medo que lhe assombra, meu caro?
Convido-lhe a lançar-se na minha realidade, e veja você mesmo, meu amigo
descrente.
O jovem apenas acena positivamente com a cabeça, ato que faz
o estranho lord tomá-lo pela mão
fazendo-o erguer-se de sua cama.
O ambiente no entorno dessa cena clareia sutilmente,
enquanto o enigmático mago do tempo faz descansar em seu dedo anelar esquerdo,
antes vazio, anel semelhante ao que ele mesmo usa, apenas um tanto menor e mais
simples.
Estranhamente o jovem sente algo correr pelo seu corpo, como
uma energia pulsante, que lhe revigora e lhe vicia exatamente naquele instante.
- Sim, meu caro... Isso é poder! Coisa que pouquíssimos
privilegiados experimentaram até hoje.
- E agora o que faço?
- Apenas deseje profundamente e você estará exatamente no
local e no tempo que quer visitar, se não me engano em seu passado, a tempo de
mudar seu futuro que é nosso presente.
- Sim...
- Calma amigo, não deveria se vestir antes?
Foi apenas aí que notara que estava completamente nu, se não
fosse o par de meias que calçava.
A ânsia por mudar sua vida lhe fizera cego até mesmo para
coisas práticas da vida, então o que seria uma simples nudez?
Devidamente vestido – e perfumado – olha para aquele que é
agora seu mestre e pergunta:
- Há algo que eu deveria saber? Algo que não possa realizar?
- Não pode mudar o livre-arbítrio de ninguém, esse poder é
desejado até mesmo pelos deuses, mas infelizmente não o possuímos, mas pode
fazer exatamente tudo no âmbito natural para mudar seu destino. E deixe de lado
seus pudores meu jovem, é mais fácil quando você os abandona...
- Eu o verei de novo?
- Decerto que sim, meu caro.
Ele fecha seus olhos azuis e é lançado num outro ambiente,
noutro tempo. Sentiu certo desconforto como os novatos em primeiro voo, apenas
potencializado quanticamente, óbvio...
Mas agora está lá... Defronte de velha casa desgastada pelo
tempo. Seu corpo, embora contendo a energia de um estro, estava tenso, trêmulo
e completamente estranho.
Tocou a campainha e notou surpresa e apaixonada figura em
sua direção. Possuía olhos tristes, sorriso de cantos de lábios, cabelos
negros, e um desejo enorme de abrir o portão e abraçá-lo por instantes a fio.
Foi o que fizeram.
Ele agora sabia o gesto certo para não por tudo a perder...
Essa parte foi a mais simples, pois repassou isso em sua mente vezes e vezes. O
abraço lhe entorpece até que desperta e está de novo em seu quarto.
Sonho? Não! O anel ainda está em suas mãos e o gosto do
beijo e o perfume que emolduraram o encontro ainda estava em sua roupa. Isso
mesmo; roupa... Até onde lembra, estava apenas de meias na noite anterior. Foi
tudo real.
Tomado por dor terrível tenta remover o anel, lançá-lo
longe, mas seu esforço é vão...
- Não faça assim meu amigo.
- Você! Seu cretino mentiroso... Eu estava lá, mas vivi apenas
alguns minutos.
- Ora meu amigo, instantes felizes não são melhores do que toda
uma vida triste e vã?
- Você me enganou, estou preso a essa realidade não é?
- De fato meu esclarecido pupilo.
- Porque fez isso a mim? O que você ganha com isso?
- Ahhhhhh.... As deliciosas perguntas de novo.
Você ainda faz parte de grupo seleto, porém, diferente de
seu mestre que singra milênios, seu poder apenas se limita àquele momento...
- Por quê?
- Foi você quem escolheu. Tinha o poder de estar com quem
quisesse em qualquer tempo, mas preferiu ver seu amor e resgatar seus erros.
Agora está preso a esses momentos. Foi seu enganoso e desejoso coração que
assim o fez.
- Agora estou preso a isso?
- Absolutamente. Você está preso à esse passado há
muito tempo. Apenas lhe dei poder para realizar seus desejos mais notórios.
Esteve feliz e completo por alguns instantes, não foi?
Quem se lança no amargurado passado, apenas imaginando como
tudo seria diferente é escravo desse passado. Pense positivo, pelo menos seus
últimos instantes são felizes...
Dito isso, o bruxo temporal se despede acenando-lhe com a
cabeça e lhe deixa só com seus pensamentos, enquanto lhe vira as costas, e
sente dentro de si o poder ao entorno sendo deslocando pelo jovem quando mais
uma vez salta em direção ao passado. Sente que fez um bem quando estabeleceu
macabro paradoxo na vida desse – agora – escravo do tempo.
Olha em pequeno bolso interno em seu sobretudo e nota que há
ainda muitos anéis do tempo. Vislumbra o futuro e simplesmente some, saltando
em direção a ele.
Cuidado com seus desejos e preces...
Wendel Bernardes.