Junta forças
pra levantar seu corpo meio exausto e vaguear pelo quarto em busca da porta. Quase
se cortou com os restos de um doze anos, que jazia no chão esperando vítima
desavisada. Porém o que lhe preocupa a mente ainda nebulosa no momento são
questões mais práticas. Onde esteve, com quem esteve e fazendo o quê? Nem todo o
whisky do mundo teria o poder de lhe apagar a memória. Claro que seu
esquecimento era fruto doutra coisa.
Ao quase
arrancar da parede as persianas ao tentar abri-las nota que já é dia claro. Os raios
de sol o ferem mais dolorosamente quem sabe por conta da escuridão que lhe
permanece n’alma. Rapaz boa pinta, de família decente e hábitos originalmente saudáveis,
enveredou-se em seu universo particular e começou a ousar cada vez mais, como
que testando seus próprios limites, conhecendo um alter ego estranho, obscuro,
sombrio. Aos poucos sentia sua negação abandoná-lo e o que lhe caberia agora seria
cultivar seu ‘eu’ mais negro.
Ao sair do
quarto topa uma casa completamente bagunçada. Ambiente tipicamente masculino
(alfinetaria qualquer mulher), mas o cenário caótico e sujo mais demonstrava a
atual decisão dele em lançar-se nesse mundo paralelo que qualquer outra coisa.
As imagens
vem aos poucos trazendo à mente algo de ontem... luzes piscantes, som grave,
gente jovem e bonita. Uma balada certamente. Inserido nesse ambiente pouco a
pouco rememora os passos antes de sair de casa também. Veste-se meio com pressa como que muito
atrasado, guarda algo no bolso que não parece fazer parte dos costumeiros utensílios
que normalmente se faz ao sair. De volta às cenas da festa, pode ser notado
olhando para todos os lados como que querendo fisgar alguém.
São tantos
olhares trocados, tantas chances, inúmeras possibilidades. Após alguns momentos
encontra sua vítima em potencial. Menina bela, jeito meigo e discreto, maquiagem
básica. Parecia exalar pureza, inocência mesmo... ‘perfeita’!!! É nesse
instante que ele sente algo como que querendo eclodir. Seu sangue ferve, seus
olhos outrora simples ganham contorno animalesco. Não é apenas o frenesi do
álcool aliado ao som ensurdecedor do bate-estaca. “Ele está chegando” pensa.
Quase que
automaticamente engole duas pílulas translúcidas de tom âmbar e quando a aborda
seu temperamento está completamente dominado. Ela mal pôde esboçar reação senão
acompanhar esse estranho, porém sedutor desconhecido em uma, duas, várias
danças intermináveis. Nada era dito. Seria inútil tentar, ela imagina. O som
simplesmente a impediria. Ele realmente não a ouviria, mas não era o som alto o
real motivo.
Nessa curiosa
impossibilidade de conversa apenas lhes sobrara o olhar. O dela ia de
curiosidade a certo medo. O dele era uma incógnita! Os minutos se passaram e
ele agora completamente possuído por seu alter ego a convence com grunhidos ao
pé do ouvido que a noite poderia continuar bem melhor fora da boate. Ela cede
crendo que uma experiência nova lhe aguarda. Nem saberia expressar o quanto
está certa.
Sala pequena,
cores sóbrias, cheiro de umidade. Ele agora é uma mistura de outras
personalidades com pitadas de Don Juan e boa dose de neanderthal. Beija-a de fazer seu pouco fôlego
simplesmente sumir. As mãos dele deslizam o pequeno e frágil corpo tremulante e
a firma contra a parede como que querendo mais base para o que virá. Ela sente
que tudo está começando a ficar desconfortável e quando ensaia um basta é
cruelmente atingida pela violência de ter seu direito de mulher abolido. Ela grita
- na verdade urra – mas o som desses lamentos apenas fornece mais prazer ao seu
algoz. Impossível descrever a cena patética que se discorre onde fera e presa
travam um balé trágico e grotesco, aqui arrependimento da pobre moça é a
cortina de fundo.
Agora os
olhos dele são bestialmente revelados em coisa quase inumana. Ele a fere
propositalmente e encontra diversão nesse ato vil. Humilhada, cansada e
fragilizada, ela apenas roga aos céus em seu íntimo que isso não demore ainda
mais. Como que ouvindo as preces da jovem, o animal para sua função e lhe fita
os olhos assustados. Ela tanta se afastar, quem sabe apenas pegar suas coisas e
sumir desse covil insano. Ele até que gosta da ideia de lhe deixar crer nessa
possibilidade. No momento em que se agacha pra colher suas roupas é atingida
seguidamente por algo frio e cabal. A dor se mistura ao medo da morte agora
factível. Seu sangue jorra e suas esperanças se vão enquanto suas vistas
enegrecem.
Ele parado
permanece saboreando cada cena como que sorvendo energias dessa tragédia. Apenas
se abaixa pra sussurrar em seu ouvido:
-“Você foi
ótima, querida...!”
Ela apenas
suspira e se vai.
Após as
cenas lhe lembrarem quem é realmente, tão somente veste-se mais uma vez e
prepara-se para sair de novo. O mundo é pra ele um celeiro de boas
oportunidades e o monstro que habita em seu íntimo (que faz uso de drogas desconhecidas
para aflorar) tem sede. Essa noite ele mais uma vez sairá à caça. Face de
Jekill, alma de Hyde... Topa??
Wendel Bernardes
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